sexta-feira, agosto 29, 2014

quarta-feira, agosto 27, 2014

João Pereira Coutinho: Intervalo de gelo*


No fim, João Pereira Coutinho pede para que esqueçamos este texto. Não é possível, e ele sabe. Eu peço só para que o leiam.

Meu pai morreu com esclerose lateral amiotrófica. Corrijo. Foi morrendo. Tinha 50 anos quando a doença lhe bateu à porta.

"Aos 50 anos a minha vida vai mudar", dizia ele, cansado da advocacia, vezes sem conta. Queria mais tempo para ler, escrever. Viajar. Alguém lá em cima tem um sentido de humor celestial. Mudou mesmo.

Mas o que é a esclerose lateral amiotrófica (ELA)? Deixo explicações científicas para médicos e pesquisadores. Digamos apenas isso: se eu tivesse que escolher uma doença terrível para acabar com a minha carcaça, a ELA estaria no final da lista.

Paradoxal. A ELA não dói. Nem necessita de tratamentos invasivos. Porque só ela é invasiva, imparável, silenciosa, apagando o que somos - a marcha, os gestos, as expressões, a fala - até só restar uma estátua com consciência plena. Quando a respiração se apaga (o fim clássico), a estátua apaga-se também. Finalmente.

Meu pai enfrentou o inferno com um estoicismo obsceno. Sim, ainda hoje me parece obsceno que ele nunca tenha chorado a sua sorte. Como me parece obsceno o tempo que ele viveu como se o tivessem enterrado vivo. Três anos. Uma eternidade.

E, nesses três anos, perguntava muitas vezes que pensamentos lhe habitavam a memória - porque a memória é tudo que resta a um corpo rigorosamente pétreo. Que mundo seria o dele, à noite, no escuro, quando as únicas palavras que poderiam ser proferidas eram mentais?

Pensaria na infância? Nos pais dele? Na vida que teve e, mais importante ainda, na vida que poderia ter tido?

Que orgulhos, que arrependimentos, que segredos o assombravam durante a insónia? Mesmo os condenados têm direito às últimas palavras. Que palavras seriam essas?
Silêncio. Ainda hoje formulo as mesmas perguntas contra a mesma parede de silêncio. Sei que existe um livro, "O Chalé da Memória", que o historiador Tony Judt escreveu sobre o assunto. Com conhecimento de causa: também ele morreu nesse abismo lento e conseguiu comunicar para o papel a solidão medonha que a doença traz.

É um livro que continua sobre a minha mesa de trabalho. Nunca tive a coragem suficiente para o ler. Definitivamente, em matéria de coragem, há uma diferença genética considerável. Espero que não seja a única.

E se relembro a doença é porque ela tem andado nas bocas do mundo. Ou, melhor dizendo, nas cabeças do mundo. Baldes de gelo despejados sobre celebridades, que depois desafiam outras celebridades a fazer o mesmo.

O vírus começou com um desafio de um doente com ELA, o americano Pete Frates: ou as pessoas experimentavam a experiência gélida do balde ou então doavam 100 dólares para ajudar a combater esse demónio ignoto.

Sem surpresas, o balde fez mais sucesso entre as celebridades do que a doação anónima. E talvez esse fosse o momento para que o cronista, brandindo o seu chicote e molhando a pena em ácido sulfúrico, escrevesse um longo texto sobre a vaidade das celebridades e a estupidez que fatalmente as define.

Embalado pelo cinismo e pela indignação, seria igualmente possível defender que o balde de gelo não faz justiça à doença. Emparedar as celebridades em cimento seria uma experiência mais próxima da realidade.

O texto, para além de previsível, seria inútil. E, com honestidade, seria também injusto. A brincadeira narcísica do balde foi enchendo os cofres de todas as associações que ajudam milhares de estátuas vivas.

E, com sorte, talvez a medicina consiga fundos para lidar com a mais desconhecida e brutal das doenças mundanas.

Por outras palavras, esqueça o balde e contribua. E esqueça também este texto, este intervalo, este momento de fraqueza. Gelada.
* Folha de S. Paulo

segunda-feira, agosto 25, 2014

Teremos sempre Coura



Se Coura fosse um lugar, seria um daqueles lugares onde desejaríamos ficar para sempre. Mas Coura não é um lugar, é um território mental. Não é seguro que o que lá se passa não passe apenas na nossa cabeça. Ou nesse canto mais fundo e insondável - e infalível - chamado coração. Não vale a pena experimentar sentir o que lá se sente noutro festival. Não funciona. Coura põe-nos a levitar como naquele momento inicial em que um poderoso medicamento nos tira a dor. E, desta vez, foi como ver um filme num cinetoscópio, em que é quase impossível isolar as posições.

Talvez os Chvrches não tenham dado o melhor concerto do festival, mas deram seguramente um concerto mil furos acima do que qualquer jornalista escreveu. É um dos nossos concertos do ano, também porque uma banda é a bagagem que nos dá, e na nossa tínhamos longos meses de perseguição da digressão europeia destes escoceses em busca de um concerto que não estivesse esgotado (estavam todos) e só deixámos de procurar quando foram confirmados em Coura. Logo em Coura!

Lauren Mayberry, com aquela voz de desenho animado, miníma na estatura, é enorme porque não precisa de freakshow nenhum para nos pôr a dançar freneticamente do início ao fim, a cantar do início ao fim. Era impossível ter sido melhor e eu quase gostava de a ter descoberto só ali, para aquilo tudo ser ainda mais bonito. Que pena que não tenha contaminado a encosta inteira. Mas tudo bem, Coura é uma espécie de mapa da caça ao tesouro e é sempre possível encontrar mais do que um no mesmo palco. Ou no palco do lado. Mas não, não foi o excessivamente juvenil Mac DeMarco, apesar da boa imprensa e de todo o hype criado em torno dele.

Ao contrário, um homem que aparece em palco a parecer o Vincent Gallo em novo só pode ser um caso sério. Se ainda por cima nos atira logo para dentro do Pulp Fiction e nos põe automaticamente a sorrir e a menear as ancas como Uma Thurman naquete twist do Chuck Berry (ou como Manuel Justo dos Sensible Soccers), isso é amor à primeira vista. Foi o que sentimos quando vimos Brooks Nielsen dos Growlers, empatia total e muita temperatura a subir. E ainda agora podíamos lá estar a dançar com ele. Depois, há sempre pelo menos um momento epifânico em Coura, daqueles que ajudam a entender por que razão ficaríamos lá para sempre.

Este ano houve dois: Hamilton Leithauser a cantar I'll never love again, I'll never love again, I'll never love again, toda a gente a cantar I'll never love again, ninguém pode em consciência querer cantar isto, mas toda a gente cantou em coro I'll never love again e foi absolutamente de arrepiar. E Cheatahs, naquele Fall (que mesmo remetendo um bocadinho para Song for Zula dos Phosphorecent, a epifania do ano passado) atirou-nos para um lugar qualquer dentro de nós que só é possível descobrir ali. Há concertos de ir às lágrimas em Coura. Estes foram, e foram dos mais memoráveis desta edição.

Mas também há concertos inesperados, que nos deixam com um Hã?! na cara e nos engolem e contagiam. Goat foi um maravilhoso e total freakout. Coura é descoberta, mas também é memória. Isso explica a rendição-lata-de-sardinhas em Beirut (mesmo se já os tínhamos visto em 2011 no Meco e percebido que o concerto não é bem o que gostaríamos que fosse e desta vez tenha sido igual - igual não é mau, é só menos) e não explica o desapontamento de tantos com James Blake.

Raios, ele deu-nos a case of you que não nos deu no Primavera, deu-nos um concerto para ouvir (sentir?) de olhos fechados e no fim ainda nos estendeu como que uma hóstia mágica para uma comunhão de paz. E nós viemos embora dali só a rezar para que dure. Talvez só mais um inverno. Talvez só até ser Coura outra vez. Coura é amor e o amor é cego, mas não é surdo. Talvez tenha sido a melhor edição de sempre. Muito e muito obrigada.

PS1. Já vimos vários concertos dos Sensible Soccers, já os vimos em Coura, e podíamos vê-los alegremente todos os dias. Mas este ano, às seis da tarde (às seis da tarde?!? Sensible Soccers?!?) foi impossível chegar a tempo. Caso contrário, teria sido um dos nossos concertos. Sensible Soccers é sempre um dos nossos concertos.

PS2. Concertos ao fim da tarde é dureza. Chegámos a duas canções do fim de Seasick Steve e, por razões outras, a igual distância de The oh sees. Duas perdas imperdoáveis, consta.

PS3.: Nunca consegui ver um concerto dos Linda Martini até ao fim. E acho que nunca vou conseguir. O concerto começa, tudo bem, o baterista começa com aquele paleio e eu começo a ter vontade de sair e saio, tem mesmo de ser. Não se aguenta aquilo.)

(Nos últimos 16 anos falhei uma edição de Coura, treze das quinze foram vividas contigo, José Miguel Gaspar. Pode mudar tudo e até pode acabar o mundo, como canta o Herman, mas uma vida inteira juntos já ninguém nos tira. És o melhor companheiro rock do mundo.)

quarta-feira, agosto 20, 2014

As elites, os Governos e o BES

É um belo, completo e obrigatório texto, que explica, entre outras coisas, como funciona a elite em Portugal, por que mente o Governo quando diz que os contribuintes não vão pagar o BES e quem são as pessoas que sempre escudaram Salgado, a começar por Durão Barroso.

"Portugal being a small country, it has a family-based and incestuous ruling elite to which Salgado belongs under the branch of the Espíritos Santos. One of the favorite pastimes of this elite is a form of deadpan humour where they make public declarations blatantly disregarding reality and blaming the Portuguese workers for all the problems of their own making.
(...)
Many figures of national and international politics have close ties to the bank. Durão Barroso, everyone’s favorite former European Commission buffon, was a BES consultant before he became Prime Minister. Other figures include a former Minister of Economy and Innovation; a former Minister of Public Works and current president of EDP, the electricity company; a former Minister of Interior Administration; a former Minister of Economy; parliamentarians, among others. These figures belong mostly to the Socialist and the Social-Democrat parties, the power duopoly that alternates in power, keeping up the farce of capitalist democracy while implementing similar policies. The bank thus has a firm foothold in the “centrão” (big center)."

Aqui:
http://revolution-news.com/banker-said-portuguese-dont-want-work-prefer-subsidies-wrecks-bank-bank-gets-subsidies/

domingo, agosto 17, 2014

Don't come knocking by Wim Wenders


He’s a lonely man who’s lost his only love; It’s hiding in his system like a drug. It’s just around the corner there, It’s hiding from him everywhere; He’s a lonely man who’s lost his love. He’s a lonely man who finds no one to blame. He knows that love’s no war and life’s no game. He has an anger in his soul, That holds to love and won’t let go. He’s a lonely man who finds no blame.

sábado, agosto 09, 2014

A most wanted man by Anton Corbijn


"It's a frustrating, unfair world we live in. At least we had Philip Seymour Hoffman for a bit of time, helping us to illuminate it." 
(http://www.vanityfair.com/vf-hollywood/a-most-wanted-man-review)

sexta-feira, agosto 08, 2014

Terrivelmente nosso e indiscutivelmente bom*



O Porto é o companheiro de uma vida. É charmoso, elegante, delicado e tem a base das relações para a vida: é profundamente acolhedor. Gostar de alguém deposita-nos o peso da incondicionalidade: não dá para admitir o desdém do que, na alma, é terrivelmente nosso e indiscutivelmente bom. Quem é do Porto defende a cidade com unhas e dentes porque nascer tripeiro significa ter orgulho num sotaque que não se quer perder, e isso é só um pedaço visível de tantos sentimentos menos óbvios. Defender o Porto significa levantar a bandeira da simpatia que não há noutros sítios e gostar de chamar as coisas pelos nomes: um fino nunca foi uma imperial, não há cruzeta que venha a ser cabide, nem há estrugido que possa ser tratado por refogado.

O Porto tem a melancolia dos amores que são para sempre: parece desenhado, melancólico e projecta sombras incríveis que — tenho a convicção — o sol só lhe dá a ele.
O amor traz destas cegueiras que nos permitem apreciar defeitos. É por isso que o mar pode vir gelado e ser um puzzle de rochas difíceis de desencaixar, o vento até pode vir de Norte e ser preciso travá-lo, mas não há cheiro a sargaço como aquele.

Ser do Porto e não viver no Porto converge na simbiose que é encontrar alguém que tem a mesma base. Bastam minutos de conversa para saber que o código geográfico é comum e que o ADN não se vinca só no sotaque, já que o mais bonito transborda na maneira de estar.

A saudade é uma palavra tão repetida que até já soa vulgar, por isso, enquanto me contorço de dores por não lhe encontrar sinónimo, a verdade é que a falta que as pessoas nos fazem pode ser traduzida em lugares, se eles nos encherem de sensações.

Ser do Porto é sentir a cidade como uma tatuagem que nunca precisou de estar desenhada. Confesso que não encontro esta necessidade de proteger este pintainho debaixo da asa (sem nunca ninguém nos pedir para isso) nas pessoas que nascem noutros lugares. Confesso que amigos de cidades tão diferentes não as defendem com metade da convicção que carrega esta pronúncia do Norte a que os “tontos chamam de torpe”.

Vão e vêm: são assim os estudos com dados estatísticos sobre a vida, como se ela pudesse ser tratada em gráficos. Esta semana, surgiu mais um: o Porto é a cidade mais amada pelos seus habitantes. Fica no topo da lista, adianta-se a Hamburgo, passa Colónia, finta Munique e ganha a Barcelona. Qualquer sentimento semelhante a este é mais bonito em imagens do que em todas estas palavras. E não é preciso nenhum gráfico para medir.

* Marta Couto, hoje, no P3

quinta-feira, agosto 07, 2014

Paulo José Miranda: Filhas


"O futuro dói-lhe muito. Beber acalma-lhe a dor. (...) A dor de quem não quer que as coisas mudem. Porque têm de mudar os sentimentos e as pessoas, porque não podemos permanecer nas palavras que dissemos. Porque a alegria tem de transformar-se em tristeza, em dor, em palavras do avesso do que já foi dito? Chegou a prometer a Deus que, se voltasse a sentir dentro de si o amor que já tinha sentido, nunca mais ia... nunca mais qualquer coisa... O desespero de quem começa a entender o que é ser humano, e que nada, mas mesmo nada, nos pode fazer andar para trás, no tempo e nos sentimentos. Ser humano é não ter inversão de marcha. Ser humano é ser para a frente, sempre para a frente. E para a frente é para o fim, para a dor, para a decrepitude.

(...) Passou a beber para atrasar a vida. Quando um humano quer ser bom e descobre o medo que a vida encerra no seu interior, é muito raro não querer atrasar ou mesmo boicotar a vida. Querer o bem, e não o conseguir fazer, dói muito.

O maior mal dos nossos tempos é o deserto que construímos para nossas vidas, como se tivéssemos, anos atrás, cortado todas as árvores da nossa humanidade e feito uma replantação só de eucaliptos o que, com o tempo, conduziu à desertificação do humano e aos desertos onde vivemos, desertos que somos. (...) O adubo que alimenta as raízes é o medo, o isolamento e a desconfiança. Olhamos, vemos e cheiramos a deserto. Cheiramos o deserto e cheiramos a deserto."

[Tem a duração de um jogo de futebol, o livro e a leitura do livro. O que fica é muito mais. Absolutamente rendida a Paulo José Miranda.]

terça-feira, agosto 05, 2014

Garrel X2


Louis Garrel é o Ryan Gosling dos franceses, é tão tudo que pode fazer o que quiser. Eu, que nunca pendurei fotografias de actores nas paredes do quarto, nem nos cadernos da escola, nem numa qualquer esquina da cabeça, não sei se teria a mesma lucidez se hoje tivesse 15 anos. Não sei se resistiria à tentação de forrar a vida com frames do Ryan Gosling. Felizmente, já não tenho 15 anos... A idade não serve para grande coisa, mas sempre nos poupa de um certo ridículo. O que não consegue evitar é o fremitozinho de cada vez que Louis Garrel - actor e cantor, com pequenas incursões pela realização, como Gosling -, mas muito mais do que só um guilty pleasure como Gosling, aparece num novo filme. Há quem diga que Garrel faz sempre só de Garrel (como Gosling parece fazer sempre só de Gosling), mas se outra prova de diferença não houvesse é vê-lo num filme de Garrel-pai, dos mais superlativos cineastas europeus, e noutro filme qualquer (talvez com excepção para Honoré). Temo-lo agora em dose dupla, em "Um castelo em Itália" (Valeria Bruni Tedeschi) e em "Ciúme" ( Philippe Garrel). São os ditos dias felizes do cinema. Pena que passem sempre ao lado do Porto. Aceitam-se links para cópias, portanto.

domingo, agosto 03, 2014

Asaf Avidan



My life is like a wound I scratch so I can bleed
Regurgitate my words, I write so I can feed
And Death grows like a tree that's planted in my chest
Its roots are at my feet, I walk so it won't rest

Oh, Baby I am Lost...

I try to push the colors through a prism back to white
To sync our different pulses into a blinding light
And if love is not the key. If love is not a key.
I hope that I can find a place where it could be

I know that in your heart there is an answer to a question 
That I'm not as yet aware that I have asked
And if that tree had not drunk my tears
I would have bled and cried for all the years 
That I alone have let them pass

Oh, Baby I am yours...

sábado, agosto 02, 2014

Pedro Mexia: "Amigo meu"


"E algumas das manifestações de amizade mais consistentes que conheço consistem em deixar alguém em paz, deixá-lo ser quem é, às vezes sozinho, em solidão temporária e benéfica.

Não ter amigos, não ter amigos nunca, leva ao fechamento, à incivilidade, à insanidade. Mas há amizades que são também formas de solidão. Amizades sem empatia, isto é, sem a tentativa de entendermos aquilo que nunca experimentámos. Amizades sem confidencialidade, que são formas de perfídia. Amizades inclementes como julgamentos sumaríssimos. Ou um amigo que diz mal de nós em público, ou fica calado quando nos ofendem. Um amigo que é um inimigo."

sexta-feira, agosto 01, 2014

Paulo José Miranda: Todas as cartas de amor



Meu amor,

Não estranhes que a pele de outro não tenha um cheiro agradável! Nem mesmo esse que agora arrastas pela mão ao longo de um corredor e parece contente porque o levas ao cinema. Não era a minha pele, meu amor, era o meu coração que cheirava bem, quando te encostavas a mim. Não era a minha boca que te beijava bem, meu amor, era o meu coração e o meu hálito fresco de nada ainda se ter partido por dentro. E escrevo-te agora de uma cidade distante, moribundo, gasto e a recuperar-me pelos beijos e pelas palavras de uma outra mulher, porque somos e seremos sempre outros que outros hão-de descobrir.

Ninguém pode saber quem é, depois de tanto tempo a ouvir dizer sempre o mesmo que se é. Eu só era aquilo que conseguias ver, mais nada. Se dizias que eu não prestava, eu não prestava; se dizias que eu prestava, eu prestava; se dizias que eu era alto, eu era alto; se dizias que era baixo, eu era baixo. É por isso que ficar sem ti, foi ficar sem identidade. Não te perdi quando partiste, perdi-me! Agora, aos poucos, de boca em boca vou me descobrindo. A cidade tem um rio que a atravessa, onde os jovens ao fim do dia se sentam em grupos com as suas garrafas e, por vezes, passam uns aos outros as bocas e as mãos. A cidade tem museus que, sem ti, não visito. E, com esse tempo livre, ando pelas ruas, pelas avenidas, pelas pessoas e pelos cafés, perdido como sempre, pelo menos até encontrar uma outra pele que me saiba tão bem quanto a tua e me diga quem sou. 

Porque o amor, meu amor, é esta necessidade que o humano tem de lhe dizerem quem ele é. A necessidade de acreditar no que lhe dizem; a necessidade que o humano tem de acreditar no que uma pessoa lhe diz. Meu amor, sem amor somos apenas tudo aquilo que podemos ser e não aquilo que somos. Não te admires tanto de estranhares a pele do outro que levas pela mão, meu amor, ele não te pode dizer quem és. Perdoa-lhe, assim como eu te perdoo.
O teu.

Paulo José Miranda, Todas as cartas de amor

[Não há cartas de amor a fazer de conta. Pode inventar-se um romance, mas não pode inventar-se uma carta de amor, acho. Por isso, é preciso coragem para publicar esta colecção. Sobretudo, porque não são cartas trocadas como as de Anais Nin e Henry Miller, ou como as de Fernando Pessoa e Ofélia. São cartas sem resposta, o que as torna ainda mais nuas. Escritas por um homem, ainda por cima. Neste tempo.]