domingo, outubro 26, 2014

"Future Islands transformam Hard Club num suadouro", por José Miguel Gaspar *


Aconteceu ali qualquer coisa de extraordinário e de perplexo - a sala 1 do Hard Club converte-se num suadouro exaltado, mas as pessoas continuaram vestidas - e há duas explicações, ambas febris. Uma: a ventilação da sala é deficiente na simultaneidade de mil pessoas e música impossível de não dançar, como é o caso do electropop venéreo dos Future Islands.

Duas: fomos vítimas de um fenómeno de transmissão viral, não como o de David Letterman, mas um vírus com sintomas e consequências concretas (vertigem, contrição torácica, escótoma cintilante, aceleração do pulso e do coração, aumento anormal da temperatura do corpo, exudação abundante) e isso começou assim que Samuel T. Herring, o vocalista, começou a suar, que foi mais ou menos assim que ele entrou em palco. Em qualquer dos casos, não foi um acontecimento normal. Ocorreu ontem à noite, sexta-feira 24 de Outubro, entre as 22.25 e as 23.50 horas na primeira vez que os Future Islands vieram de Baltimore, nos EUA, para tocar ao vivo no Porto.

Foi à terceira canção que reparei (eles tocaram 17, com três em encore) na quantidade de suor que nos rodeava e vi que a camisa de Samuel T. Herring já estava de outra cor e só o triângulo das pontas continuava claro, ainda que só por mais uns minutos, até a camisa, uma camisa Mao, ficar empapada e líquida sobre ele. A partir daí não consegui mais desviar o olhar do vocalista e o resto da banda (baixo, bateria e teclas, não há uma guitarra à vista) pareceu ter sempre uma cortina de luz escura em cima e ficou noutro plano mais atrás, com ele à frente a ferver na proa próximo de nós. Foi aí, na "A dream of you and me", uma canção sacarina com baixo ribombante, bateria seca e uma cascata ingénua de três acordes de teclas, e em que ele canta a paz desencontrada e as marés do amor, que se sentiu o primeiro pico emocional que haveria de eclodir em "Seasons (waiting on you)".

A partir daí, com as canções a começaram sempre com as nossas palmas compassadas e delirantes (mais as mulheres que os homens, é verdade), que se mantiveram depois durante quase toda a passada de "Balance", ficamos acorrentados àquela electricidade viciosa e dançante e dissolvemo-nos felizes pelas canções seguintes abaixo, a destilar todos juntos dentro da caixa negra do Hard Club, a ver Samuel T. Herring a bater repetidamente com o punho no peito e a remoinhar e a dizer que nós éramos os maiores e que a nossa cidade era incrível e agora "lets fucking dance". É um performer extraordinário, Samuel T. Herring e ali perto pudemos comprovar que foi adequado o desvario do apresentador americano David Letterman, que desorbitou quando viu o líder dos Future Islands a dançar (e não parou de falar disso nos episódios seguintes do seu programa, foi já em Março mas a transmissão permanece viral).

É uma coisa difícil de descrever e de focar, um homem baixo e ursino (ele não canta só, ele brame e ruge e urra) que parece que dança em rewind gravítico ou que parece que tem uma força a puxá-lo para trás no ar, as pernas flectidas num twist torcido, a desabrochar um braço como se fosse um discóbolo e a travar-se no último momento possível antes do arremesso, como fez na "Seasons", a canção dos crescendos em que todos explodimos e sentimos o tremor de estarmos ali. Apesar de nova, toda aquela música synthpop dos Future Islands é reconhecível pelo público, que parecia ter todo uma idade indefinida entre os 30 e os 50 anos e ter crescido na década de 1980 com os sulfurosos neo-românticos e o "motorik" da new wave e talvez seja isso que explique a sua popularidade.

Ou então é a lírica, também ingénua e rosada, mas que flutua sempre dentro da dicotomia do amor (enxurrada e solidão indómita), e que escorre toda da violência que é a bifurcação desse fogo - e que vimos arder quando ele nos rugiu o "Fall from grace", outra canção sobre o afogamento da perda, em que ele diz que há uma manhã em que acorda e vê o seu reflexo aos pés e percebe que afinal ele vivia dentro de si mesmo, mas agora já é tarde, agora já ele está grave e grisalho. No fim, sem saber como vim parar cá fora, aturdido com o fim, já no vento e no esfriamento repentino do pátio do Mercado Ferreira Borges, ficámos ainda ali muito tempo e sentimos a vasocontrição e a corrida do sangue a fugir-nos dos pés, das mãos e da cara e apreciamos o frio nervoso que se sente sempre no fim dos bons concertos.

Sentíamos que estávamos surdos (e eu abria a boca como um peixe espantado a tentar que os ouvidos voltassem ao normal) e parecia que a paisagem toda à nossa volta flutuava desfasada e excessivamente nítida e falámos de olhos demasiado abertos e com muitas exclamações e sem sabermos que estávamos a falar demasiado alto.

Ainda surdo e electrolítico, saí, desci e percorri o túnel vermelho sujo da Ribeira até ao carro, internado na batida do baixo do "Seasons", a andar e a mexer a cabeça cadenciada como se fosse um boxeur, e foi aí que vi com imediata clareza qual o actor com que Samuel T. Herring é parecido: ele é a cara chapada de Tony Baretta, o detective de Nova Iorque de olhos miúdos e coração de aço da série de TV dos anos 80, que muitos anos depois haveria de matar a sua segunda mulher com um tiro de uma Baretta na cabeça numa noite de lua alienada do Arizona.

*Mais delírio, menos delírio, foi mesmo isto. E ninguém saberia dizer isto melhor que o José Miguel Gaspar. Publicado hoje, no JN

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