quarta-feira, agosto 27, 2014

João Pereira Coutinho: Intervalo de gelo*


No fim, João Pereira Coutinho pede para que esqueçamos este texto. Não é possível, e ele sabe. Eu peço só para que o leiam.

Meu pai morreu com esclerose lateral amiotrófica. Corrijo. Foi morrendo. Tinha 50 anos quando a doença lhe bateu à porta.

"Aos 50 anos a minha vida vai mudar", dizia ele, cansado da advocacia, vezes sem conta. Queria mais tempo para ler, escrever. Viajar. Alguém lá em cima tem um sentido de humor celestial. Mudou mesmo.

Mas o que é a esclerose lateral amiotrófica (ELA)? Deixo explicações científicas para médicos e pesquisadores. Digamos apenas isso: se eu tivesse que escolher uma doença terrível para acabar com a minha carcaça, a ELA estaria no final da lista.

Paradoxal. A ELA não dói. Nem necessita de tratamentos invasivos. Porque só ela é invasiva, imparável, silenciosa, apagando o que somos - a marcha, os gestos, as expressões, a fala - até só restar uma estátua com consciência plena. Quando a respiração se apaga (o fim clássico), a estátua apaga-se também. Finalmente.

Meu pai enfrentou o inferno com um estoicismo obsceno. Sim, ainda hoje me parece obsceno que ele nunca tenha chorado a sua sorte. Como me parece obsceno o tempo que ele viveu como se o tivessem enterrado vivo. Três anos. Uma eternidade.

E, nesses três anos, perguntava muitas vezes que pensamentos lhe habitavam a memória - porque a memória é tudo que resta a um corpo rigorosamente pétreo. Que mundo seria o dele, à noite, no escuro, quando as únicas palavras que poderiam ser proferidas eram mentais?

Pensaria na infância? Nos pais dele? Na vida que teve e, mais importante ainda, na vida que poderia ter tido?

Que orgulhos, que arrependimentos, que segredos o assombravam durante a insónia? Mesmo os condenados têm direito às últimas palavras. Que palavras seriam essas?
Silêncio. Ainda hoje formulo as mesmas perguntas contra a mesma parede de silêncio. Sei que existe um livro, "O Chalé da Memória", que o historiador Tony Judt escreveu sobre o assunto. Com conhecimento de causa: também ele morreu nesse abismo lento e conseguiu comunicar para o papel a solidão medonha que a doença traz.

É um livro que continua sobre a minha mesa de trabalho. Nunca tive a coragem suficiente para o ler. Definitivamente, em matéria de coragem, há uma diferença genética considerável. Espero que não seja a única.

E se relembro a doença é porque ela tem andado nas bocas do mundo. Ou, melhor dizendo, nas cabeças do mundo. Baldes de gelo despejados sobre celebridades, que depois desafiam outras celebridades a fazer o mesmo.

O vírus começou com um desafio de um doente com ELA, o americano Pete Frates: ou as pessoas experimentavam a experiência gélida do balde ou então doavam 100 dólares para ajudar a combater esse demónio ignoto.

Sem surpresas, o balde fez mais sucesso entre as celebridades do que a doação anónima. E talvez esse fosse o momento para que o cronista, brandindo o seu chicote e molhando a pena em ácido sulfúrico, escrevesse um longo texto sobre a vaidade das celebridades e a estupidez que fatalmente as define.

Embalado pelo cinismo e pela indignação, seria igualmente possível defender que o balde de gelo não faz justiça à doença. Emparedar as celebridades em cimento seria uma experiência mais próxima da realidade.

O texto, para além de previsível, seria inútil. E, com honestidade, seria também injusto. A brincadeira narcísica do balde foi enchendo os cofres de todas as associações que ajudam milhares de estátuas vivas.

E, com sorte, talvez a medicina consiga fundos para lidar com a mais desconhecida e brutal das doenças mundanas.

Por outras palavras, esqueça o balde e contribua. E esqueça também este texto, este intervalo, este momento de fraqueza. Gelada.
* Folha de S. Paulo

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