segunda-feira, maio 12, 2014

José Sócrates, Rimbaud, Kerouac e Torga


[Em Matosinhos, no Festival de Literatura de Viagem]

Num país que adora odiar Sócrates, aquilo que é uma notável conferência sobre literatura de viagem pode facilmente ser reduzida a pó. Mas a verdade, para quem quiser despir-se do preconceito, é que é uma apresentação absolutamente extraordinária. Talvez tenha só faltado Thoreau. Ou não. Talvez fosse demasiado óbvio, não sei. Sei que já assisti a inúmeras conferências em que os oradores não se deram sequer ao trabalho de preparar o que iriam dizer. Sócrates preparou - e preparou muitíssimo bem. É uma viagem pela literatura de viagem. Vale mesmo a pena ouvir. Cinquenta minutos entusiasmados e entusiasmantes. Mas como só a voz dele irrita tanta gente, vale mesmo a pena ler.

Num dia em que a SIC encetou a série "Os dias da troika", é também a demonstração de que as pessoas podem mesmo reiventar-se.


"(...) Quando me falaram da viagem [tema da conferência], comecei a perguntar-me a que propósito se convida um ex-político, um político retirado, para falar de viagens. A política e a viagem têm muita coisa a ver. Daria para muitas conferências. Mas há uma particularidade em que a viagem se aproxima de forma definitiva da política. A acção política é lidar com o desconhecido, com o imprevisível, com a contingência. É sempre lidar com aquilo que não se pode prever. Porque tudo aquilo que se pode prever com exactidão não é entregue à política, é entregue ao nível técnico. E a política tem outra característica, que é a de ter que lidar com a sua própria frustração. Porque a política serviu sempre para ambicionar ir mais além, para ambicionar transpôr aquilo que conhecemos. Não há político sem imaginação. Ou pobre do político que não tem imaginação. Notei, aliás, ao longo destes anos que passei em Paris, estudando filosofia política, e tendo também algumas cadeiras de sociologia, que o que me separa do sociólogo é que o sociólogo tem a ambição de descrever a situação. Nenhum político tem essa ambição. A ambição do político é sempre a de mudar para melhor a situação. É por isso que o político pensa com a imaginação. Como dizia Fernando Pessoa, “sente com a imaginação”.

O que tem isto a ver com a viagem? A viagem também lida com o desconhecido, com o imprevisto. Quando partimos em viagem, o mais que desejamos é sempre lidar com alguma coisa que não conhecemos. Com o imprevisto, com a contingência. Há sempre alguma coisa de surpreendente que nos puxa, que nos apela.

Um grande filósofo disse, um dia, que “o grande exercício da política é também o eterno convívio com a decepção”. Também o viajante tem que aprender a lidar com a decepção. Quantas das nossas viagens são decepcionantes! Ou porque não estavam à altura daquilo que sonhámos que era o nosso destino, ou porque não conseguimos chegar, ou porque ficámos aquém. A viagem e a política têm essa mistura: a mistura de quem ambiciona sempre lidar com aquilo que não é conhecido, com aquilo que é imprevisto, com aquilo que é a contingência que as circunstâncias da vida nos trazem. Numa palavra, o que une a viagem e a política é o sentido de aventura. Não há político que não tenha o gosto pela aventura. Tal como não há viajante que não goste da aventura.

E tomei justamente para início de conversa um verso de um grande poeta de Trás-os-Montes:

“A aventura não é chegar, é partir”

É um verso de Miguel Torga.

Devo confessar que a primeira vez que comecei a interessar-me por Miguel Torga era já adulto. Lembro-me de fazer muitas vezes a viagem entre a Covilhã e a aldeia transmontana do meu pai, e de o meu pai tentar convencer-me da beleza das encostas durienses. E eu, menino da cidade, achava tudo aquilo rude e áspero. Para ser honesto, achava o campo insuportável. E depois, aquela viagem era absolutamente horrível! Aqueles doze quilómetros entre Lamego e a Régua eram absolutamente insuportáveis! Mas o meu pai insistia, nessa viagem, em chamar-me a atenção para a beleza das fragas. E eu achava aquilo apenas rude, achava aquilo apenas pedras. Não diziam nada de poético. Até que, um dia, li pela primeira vez a palavra “fraga” num poema do Torga. E foi aí que comecei a amar verdadeiramente Trás-os-Montes e a perceber o quão de poético há naquelas montanhas durienses.

Isto vem só a propósito de introduzir a minha conversa genérica com esta ideia: não há viajante que não adore a aventura. A viagem pressupõe isso mesmo, lidar com o desconhecido, com o pequeno grão de aventura. E a aventura, como dizia Miguel Torga, “não é chegar, é partir”.

É por isso que em toda a viagem há uma ambição de liberdade. Mas de tudo o que li – sou um apaixonado por viagens e pela literatura de viagens -, lembro-me de um dia ler uma entrevista de um actor já envelhecido, que na altura era muito charmoso, com boa aparência, que se chama Omar Sharif [protagonista de “Doutor Jivago”, 1965]. Era conhecido não apenas por ser um grande actor de Hollywood, mas também por jogar bridge. Um dia, perguntaram-lhe: “Olhe lá, porque é que você, sendo um dos grandes actores de Hollywood, é o único que não tem uma grande casa na Califórnia ou em Nova Iorque?” E ele respondeu assim: “Não tenho, porque não preciso. A minha casa são os hotéis das grandes capitais europeias”.

Imaginem a impressão que esta frase causou num miúdo – eu teria 14 ou 15 anos – que na altura vivia em Portugal. “Os hotéis das grandes capitais europeias”. Isto só é comparado com o verso de Cesário Verde, que também fala disto. Assim: “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!”. Tudo aquilo foi uma impressão cosmopolita para quem vivia neste Portugal fechado da ditadura e sonhava com o mundo. A aventura, portanto.

Não há viajante que não adore a aventura. E a aventura tem sempre um aspecto de liberdade. Mas, na reflexão que fiz para partilhar esta noite, gostaria de dizer que acho que o viajante tem não um tipo de liberdade, mas vários tipos de liberdade. Gostaria de falar de três liberdades da viagem. Ou de três viagens e três liberdades.

A primeira viagem, ou a primeira liberdade, é a liberdade suspensiva. A liberdade provisória.

Viajamos, e quando viajamos esquecemos o fardo das nossas preocupações. Esquecemos também – por um tempo, é certo – os nossos assuntos, as nossas obrigações, os nossos hábitos, as nossas rotinas. Nessa viagem há sempre uma liberdade que consiste num certo desligamento. Desligamento da rede que nos envolve, dos sons, das caras, das imagens, das informações. É nisto que consiste a viagem. Mesmo as viagens curtas. Mas nessa viagem, por pequena que seja, há sempre uma certa descoberta. É a descoberta de que, afinal de contas, ficarmos privados das nossas ligações, da nossa rede, não é assim tão mau. E em vez de encararmos esse desligamento - das pessoas, dos assuntos, das informações – como uma privação, a maior parte das vezes, o que a viagem nos permite é olhar para tudo isso como uma libertação.

Sim, viajamos, partimos, desligamos. Mas descobrimos também que o mundo não acaba com a nossa partida. O mundo não se afunda. Nada desaparece, nada acaba quando nos libertamos disso. Vamos, e quando chegamos está tudo na mesma.

Essa descoberta é interessante. De certa forma, é descobrir a simplicidade. Primeiro, no sentido que, afinal, as nossas ligações, as nossas preocupações, só têm a importância que lhes queremos dar. Afinal, todos descobrimos, numa certa viagem, que as nossas preocupações estavam hipervalorizadas. Afinal, tudo se arranjou por cá. Já fui primeiro-ministro. E sei que, apesar de tudo, depois de quinze dias fora, quando regressava, estava tudo igual.

Tão imprescindíveis que nós somos! E basta uma viagem para percebermos que afinal não somos assim tão necessários. E é assim que descobrimos a simplicidade. Mas também num outro sentido. Em todas as viagens descobrimos um pouco melhor aquilo que ocupa grande debate nos mundos da filosofia, que é a separação entre o útil e o fútil. Quantos de nós, em viagem, não descobrimos que afinal tudo aquilo de que nos ocupamos tem uma grande dose de futilidade? E quantos de nós não descobrimos já em viagem que afinal aquilo que é verdadeiramente útil permence desvalorizado nas nossas preocupações diárias?
É por isto que a viagem, e esta liberdade suspensiva, é um convite e uma bênção que nos dá essa possibilidade, essa oportunidade, essa aventura de descobrirmos também a nossa simplicidade. Afinal, nada é assim tão importante quanto pensámos. Afinal, o mundo pode viver e tudo marchar e tudo avançar sem nós. E afinal o que é verdadeiramente útil é menos do que aquilo que nós pensávamos.

Simplicidade.

Poucos contactos, pouca informação, poucas trocas, e pode ser mesmo pouco tempo. Mas esse tempo faz-nos bem. É aquela viagem de que regressamos e nos dizem: “mudar de ares fez-te bem”. Na viagem há essa libertação. Uma libertação a que eu chamaria liberdade provisória. É uma liberdade suspensiva. Suspendemos aquilo que eram as nossas rotinas, as nossas obrigações, os nossos deveres e partimos. E nesse partir há sempre esta felicidade de reencontrar a liberdade. Que é uma liberdade provisória, é uma liberdade entre parêntesis. É apenas um parêntesis e isso é a característica desta viagem. Partimos felizes, mas regressamos também felizes. E regressamos com vontade de regressar. Parti, mas regressei. Parti com a felicidade de me libertar da velocidade, da excitação, da fadiga, do atordoamento. Mas fico feliz por regressar à mesma velocidade, ao mesmo atordoamento, à mesma fadiga, ao mesmo esquecimento de nós e às vezes ao esquecimento dos outros. Regressamos ao quotidiano, regressamos à vida, àquilo que nos faz andar - e depressa.

Esta é a primeira liberdade de um certo tipo de viagens que todos nós já fizemos. Interrompemos a nossa vida e partimos. Claro que muitos dirão: será isso uma verdadeira libertação? Já veremos. Mas há nisso um certo sentido de aventura. Claro que há muita gente que nunca viajou. Mas o verdadeiro viajante parte sempre com o sentido da aventura.

Nunca viajo com muitas pessoas. Viajar tem de ser com poucas pessoas. Com muitas pessoas é viajar em colmeia. Como numa sociedade, começamos também a querer ter o nosso papel naquele conjunto. Nada disso! É preciso partir, viajar com poucas pessoas. Isso é fundamental. E, por outro lado, não ter tudo planeado. Não saber onde vamos estar às cinco da tarde. Partir significa não saber exactamente o que se vai fazer. Não há maior liberdade do que essa, de partir sem se saber quantas horas exactas é que vamos demorar, para onde vamos exactamente e quantos dias vamos ficar.

É esta a primeira liberdade de um certo tipo de viagem - a liberdade suspensiva.

Mas há uma segunda liberdade. E essa é talvez um pouco mais agressiva, mais rebelde. A primeira permite um desligamento, mas é provisória. Vamos e voltamos. E ficamos até felizes de reencontrar o mundo. "Escapo à rede durante uns dias, faço nos caminhos desertos a experiência da liberdade fora do sistema, mas volto. Volto e reencontro-me com o sistema."

Mas nesta segunda liberdade já não há voltar, há apenas partir. É a liberdade da ruptura. É a viagem como ruptura.

Muita literatura convida-nos a isso, é a viagem em que há a liberdade de decidir romper. “Vou e não quero voltar”. Aqui reencontramos certamente os apelos que a viagem nos dá como transgressão. E como apelo ao grande exterior. Isto lembra-me, imediatamente, “On the road”. Kerouac. A viagem, mas não como vontade de interromper, de fazer um intervalo, de ir. A viagem de Kerouac não era para voltar, era só para partir. Porque há viagens que não são provisórias, são de ruptura. E o que Kerouac nos queria dizer no livro “On the road” é que é preciso viajar, mas para longe de tudo, viajar para romper. E romper com quê? Romper com as convenções estúpidas e imbecis. Viajar para fugir da segurança que nos adormece nos muros da cidade, daquilo que damos por adquirido. Viajar para fugir das repetições. Viajar para fugir do aborrecimento. Da frivolidade daqueles que estão tão bem instalados que já são incapazes de nos dizer alguma coisa de novo.

Esta é a liberdade que uma viagem dá como forma de transgressão. Uma viagem alimentada pela imaginação, uma viagem alimentada pela loucura, pelo excesso, pelo sonho. Essa é a viagem de Kerouac.

E atenção, esta viagem, partir como acto de rebeldia, de transgressão - “Não, não aceito as vossas regras! Quero ir para outro sistema! Ou ir para fora do sistema!” - não é tanto a ideia da procura de si mesmo. Esta liberdade de ruptura não é tanto a procura do "eu" que se deve libertar das alienações presentes para procurar um "eu" autêntico, a identidade perdida. Há gente que faz essas experiências, que acha que o seu "eu" está alienado, isto é, transformou-se naquilo que não queria ter-se transformado. Por força das circunstâncias, por força da sociedade, das convenções, das regras. E procura um "eu" perdido. Não, não é isso. É porque esse "eu", mesmo perdido, continua a ser alguém. 

E ser alguém, o que é? É ter um nome, é ter uma história, é ser um "eu" que nós passamos a vida a contar a nós próprios nos salões mundanos em que nos encontramos. Falamos de nós e os outros falam deles. E toda a gente sabe que está a representar o seu papel. Este "eu" é uma coisa boa para esses salões. E também talvez para os gabinetes dos psicólogos. Porque para ser alguém é preciso ter um papel na sociedade, é preciso ter obrigações. Esse "eu" é uma ficção que carregamos nos nossos ombros, como alguém disse. A liberdade da ruptura não significa ir à procura do "eu" perdido, do "eu" autêntico, do "eu" libertado das convenções. Não. A liberdade da ruptura consiste em assumir que não somos ninguém. "Não sou ninguém enquanto viajo, sou apenas um corpo sem história, um animal de duas pernas, mas que vive essa intensa liberdade de contacto com a natureza." É por isso que, para Kerouac, a liberdade exaltada que se descobre nas montanhas, ou não apenas no contacto com a natureza, mas também nas festas, nos excessos, na droga, nos sonhos, essa liberdade exaltada é a liberdade de viajar como recusa, como rompimento. Porque há nisto também um sonho, o sonho de romper com aquilo que é a civilização.

Isto era uma literarura que estava muito em voga nos anos 70, e que fez parte da minha geração. Romper com uma civilização declinante, decadente, que não amamos, em que não nos sentimos integrados, uma civilização apodrecida, poluída, alienante, desprezável. 

Esta não é uma viagem em que vamos e voltamos. É viajar para sempre, para o grande fora, para lá do sistema. “Não, não quero mais nada convosco. Vou retirar-me de vós e vou viajar para sempre.”

Kerouac dizia isto de uma forma muito bonita. Dizia ele que, ao ler [Walt] Whitman, lia um mundo de pessoas errantes que se vão encontrando nas estradas, de pessoas que recusam ser uma peça da engrenangem. “Não, não quero ser um consumidor, não quero comprar as coisas que estão à venda, nem quero produzir as coisas que estão à venda! Não me fazem falta frigoríficos (hoje, diríamos computadores), nem nenhuma dessas máquinas. A única coisa que quero é pôr um saco às costas, ter uma estrada e partir.” Isto levou a que milhares e milhares de americanos fizessem essa experiência da viagem. Normalmente para Oeste, para fora do sistema.

Entre a primeira liberdade e a segunda há uma grande diferença. A primeira é suspensiva. Em linguagem marxista, uma libertação burguesa. “Vamos, mas voltamos. Vamos, mas vocês esperam por nós”. Há nisso uma certa liberdade, mas esta liberdade de Kerouac é uma liberdade que não tem retorno. E é uma liberdade que eu, talvez na minha fantasia, sempre considerei acima da outra. Nunca tive essa coragem de partir. Partir sem destino. Isso sim, uma aventura. Nunca tive. Mas esta liberdade, a liberdade da ruptura que essa viagem dá, é uma liberdade acima da outra.

Esta é a segunda liberdade, a segunda viagem.

Mas há uma terceira. Esta é mais rara, mas também mais sublime. E para explicar esta terceira liberdade talvez deva expôr aquilo que na tradição da filosofia hindu são consideradas as diferentes etapas da vida.

Na tradução da filosofia hindu, o homem tem quatro etapas.

A primeira etapa é a do jovem que aprende, da criança que é aluno, aprendiz, discípulo. É a fase da vida em que devemos obediência aos nossos mestres, em que aprendemos os códigos da vida em comum, em que escutamos as lições, em que nos são dados os bons exemplos, os bons exemplos de conduta, os heróis que devemos apreciar. Essa é a juventude da vida.

Depois, há uma segunda fase da vida. É a fase de adulto. O casamento, a família, o trabalho, as obrigações sociais, a carreira, o nosso papel na sociedade. Essa é a fase adulta, aquele momento de maturidade em que a sociedade confia em nós para fazermos aquilo que é necessário fazer. Por nós e pelos outros.

Mas há uma terceira etapa, que é aquele momento em que os nossos filhos já estão criados, em que porventura já não necessitam de nós. Nessa altura, já podemos libertar-nos da carga social, das obrigações familiares, daquilo que são as nossas preocupações económicas. Esse é o momento que é descrito nessa filosofia como a ida para a floresta. “Vamos para a floresta, já não precisam de nós." E porventura também para aliviar do fardo que já somos para os outros. "Vamos para a floresta."

A literatura descobre então essa imagem do viajante. Ou melhor, ainda não do viajante, mas do ermita, daquele que vai à descoberta de si próprio. “Pronto, acabou a minha vida mundana, acabou a minha vida de responsabilidade, e agora é o momento para a meditação e para a redescoberta de mim próprio." Recolhimento e meditação. É a terceira etapa.

Mas há uma quarta, em que depois de aprender a viver com aquilo que é imutável em nós, o nosso "eu" liberto de todos os constrangimentos sociais, das máscaras sociais que utilizamos, das identidades que ostentamos, da história do passado, liberto disso tudo, esse "eu" então inicia a errância. É aí que surge a quarta fase, a da peregrinação.

“Reconcliado comigo próprio, sabendo quem sou, vou então por esse mundo.” E nessa fase, na passagem do ermita ao peregrino, há uma viagem infinita, uma itinerância constante. E nessa itinerância, o que há? O que vejo aí? Essa partida, depois da meditação, da reflexão, do recolhimento, é uma coincidência entre aquilo que somos - o "eu" que já não tem nome, nem história, nem carreira, que já não é quem foi – e o nosso coração, que está um pouco espalhado por todo o mundo. É por isso que o ermita anda, anda porque o seu coração está em todo o mundo. Mas ele já não é ninguém. Já não é ninguém a não ser ele próprio.

Esta é a liberdade daquele que renuncia, daquele que se afasta de tudo aquilo que nós amamos no mundo. Daquilo que são as nossas prepcupações, daquilo que são as nossas ansiedades. E esta é, para quem ama a viagem, para quem entende a viagem, a mais alta das liberdades que a viagem pode dar. É o desligamento perfeito. Porque já nada conta.

“Já não conta o meu passado, nem a hora que é, nem quantas horas faltam para chegar, já nem sei para onde vou, nem sei por que razão vou. Apenas vou”.
É nesse momento que nos sentimos livres da prisão do inferno. A prisão do nosso nome, da nossa identidade, da nossa profissão, da nossa carreira. Porque tudo, nesse momento, nos parece mesquinho, minúsculo e sem importância. O que é bonito.

E agora vou citar um dos autores com base nos quais fiz esta reflexão, porque ele só fala disto. Diz ele:

“Indiferente ao passado e ao futuro, não sou nada mais do que o eterno presente.”

É neste momento em que renunciamos a tudo, que tudo nos é dado.
É no momento em que já não reclamamos nada, que tudo nos é oferecido.

Se quiserem ler mais sobre esta libertação que a viagem permite, aconselhar-vos-ia a lerem os “Cadernos de peregrinação”, de um tal Swami Ramdas, que li há uns três anos e que é absolutamente extraordinário, permitindo-nos o convívio com a filosofia hindu.

São estas as três liberdades que sempre encontrei na literatura de viagens.
O que é que têm em comum? A aventura, o partir.

Há uma liberdade que é provisória, entre parêntesis, é uma liberdade só por um momento. Mas isso já é alguma coisa, se a soubermos aproveitar. Isso é uma redescoberta daquilo que é verdadeiramente importante e do que não é. E também uma oportunidade de conhecer mais. Depois vem a liberdade da ruptura, a viagem como ruptura. “Não vou. Parto! Parto porque não gosto das vossas regras, não gosto do vosso sistema e quero estar fora.” E há esta liberdade final, que é a liberdade de quem renunciou a tudo. “Já não faço nada por ser contra, já não faço nada por ser a favor. Estou apenas acima.” É a liberdade de quem renuncia.

Liberdade provisória
Liberdade da ruptura
Liberdade da renúncia.

São estas as três liberdades que vejo em várias viagens. Não que tenha feito, mas que de certa forma partilhei lendo sobre essas viagens.

Depois, pensei também que para vos falar da literatura em viagem, devia falar-vos de um autor. Sendo português, isso convidaria a falar-vos de um português. Porque do que não temos falta é de literatura sobre viagens. Toda a grande literatura portuguesa foi sempre sobre a aventura. Camões, Pessoa, Cesário Verde, que aliás não viajou muito, mas sonhava com imaginação. Tal como Pessoa.

“Há um terraço sobre uma coisa ainda
Ah, e essa coisa
Essa coisa que é linda”

Poder-vos-ia falar sobre a “Peregrinação”, talvez o grande livro de viagens que nós temos. E que beleza de livro! Mas decidi falar-vos não de um português, mas de um francês que descobri recentemente. Ou talvez não tão recentemente. Descobri-o por acaso, numa viagem que fiz, dessas da liberdade suspensiva, já era primeiro-ministro. Decidi passar o fim-do-ano no deserto da Argélia com os meus dois filhos. E lá fomos os três. E foi uma viagem tão interessante! E uma das coisas que contribuiu para esse interesse foi ter tropeçado num verso deste poeta de que vos quero falar. Este poeta também visitou o sul da Argélia.

E disse assim, quando terminou a viagem:

"Bom, agora está feito.
Agora sei como saudar a beleza"

Achei aquilo esmagador. E comecei a interessar-me por aquele poeta. E li não apenas a sua poesia como a sua biografia. Esse poeta chama-se Rimbaud. E teve uma vida extraordinária. E se queremos saber alguma coisa de viagem, podíamos saber tudo com a vida de Rimbaud.

Rimbaud teve um grande amigo, [Paul] Verlaine, que um dia disse que ele era “um homem com solas de vento”. Solas de vento. Um caminhante. E o que é que vejo em Rimbaud? Vejo a vontade da escapada, a vontade de fugir, a vontade de partir.

Aos 15 anos, fugiu pela primeira vez. Manhã cedo, sem dizer nada a ninguém. Fugiu para Paris, alimentado pela vontade de se fazer conhecer, de mostrar os seus versos, de os ler em voz alta, de se fazer amar como todos os poetas gostam. Fugiu para Paris. Uma viagem que não correu bem. Ele morava em Charleville. Caminhou até apanhar o comboio, e como tinha pouco dinheiro não pagou o bilhete. Quando chegou a Paris foi preso pela polícia, acusado de roubo e vagabundagem. Passou uma noite na prisão. Foi em seu socorro o seu mestre de retórica (ele era um excelente aluno) e libertou-o da prisão. Mas essa viagem foi frustrada. Tinha 15 anos.

Depois, foi para a terra de seu mestre, onde esteve mais uns meses e voltou a fugir. Manhã cedo, sem dizer nada a ninguém. Foi para Charleroi, onde se foi oferecer para ser jornalista de um jornal. Recusado. E depois para Bruxelas, sempre a pé, sempre caminhando. E ao longo destes meses, destes anos, construiu das poesias mais bonitas sobre a viagem e sobre a caminhada. É uma poesia de uma alegria, de uma juventude, de um prazer e de uma confiança em si próprio absolutamente extraordinários. É uma poesia que conta não apenas as partidas, as viagens, mas também o repouso nas estalagens.

"Feliz, estiquei as pernas sobre a mesa."

Aquele é um momento único! Aquilo canta a juventude, a vontade, a bondade, a crença em tudo!

Volta depois à sua terra e prepara nova fuga para Paris. Acontece que é surpreendido nessa viagem com a guerra franco-prussiana. Tudo isso bastou para lhe estragar a viagem. Ele ia para Paris para conhecer a literatura e o assunto que encontrou foi a guerra e não a literatura. Mas, ainda assim, deu-lhe para ver as vitrines da livraria, para conhecer o que ali se fazia em poesia. Tudo isto dormindo nos barcos de carvão. Mas... teve que regressar. Regressou por causa da guerra, atravessando as linhas inimigas, e voltou à sua terra. Mas quando chega - este rapaz devia ter uns 16 anos – dá-se a comuna de Paris. E ele, que tinha tido uma via pia e católica, e que se tinha revoltado contra tudo isso, ele que tinha escrito uma constituição comunista, ele que era um anticlerical feroz, foi impedido de participar. Há dúvidas sobre se ele foi ou não a Paris durante a comuna nessa Primavera. Mas, tendo ou não tendo ido, a verdade é que foi depois uma outra vez, em Outubro desse ano. E, nessa altura, leva já o seu livro “Bateau ivre”. Barco embriagado. Uma poesia absolutamente resplandecente. E leva isso como penhor, como identificação. “Aqui está, sou eu. Rimbaud”.

Não sei se já viram uma fotografia de Rimbaud. Olhos azuis, rapaz frágil e romântico, uma bela cara com uns olhos azuis sonhadores. Tudo nele me faz lembrar um poeta frágil. Mas a verdade é que, a partir daí, vai para Paris, mas já com viagem marcada. Avisa a mãe. Uma espécie de viagem oficial. Verlaine já está à espera dele. E escreve: “Venez, venez vite, grand âme chére!” Vem, vem depressa, grande alma querida.

São três anos de encantamento, ele e Verlaine, companheiros de muitas viagens, uma relação tempestuosa, com discussões monstruosas, mas também com reconciliações sublimes.

E chegamos ao final dos seus 20 anos. Ele está ainda em Paris e já tem uma reputação. Mas é uma reputação horrível, de poeta excêntrico, de miúdo insolente, grosseiro, mal educado. E, ainda por cima, alcoólico inveterado. É nessa altura que publica dois dos seus grandes livros: “Um saison enfer” [Uma temporada no inferno] e “Illuminations”. Estas publicações foram um desastre. Não só não conseguiu pagar ao editor, como vendeu poucos livros.

Tinha 20 anos. Em 1875. Nunca mais escreveu um poema. Escreveu depois muitas cartas, mas nunca mais um poema. E entre 1870 e 1875, em cinco anos, um jovenzinho, um rapaz, mudou por completo a literatura mundial. Cinco anos. E se lerem a sua poesia, vêem que ele evoca sempre a viagem. Talvez a expressão que ele mais utiliza é “Allons”. Vamos! Claro, tem vinte anos.

E depois tem mais duas fases na sua vida. Isto, para resumir. Uma fase em que decide, depois da sua separação de Verlaine, dedicar-se às grandes viagens. Decide ir à Rússia, não chega lá, fica em Viena, mais vai. Vai a Milão, vai a Estocolmo..., mas são sempre viagens de ida e de volta. No Inverno ficava em casa, a aprender línguas, partia na Primavera.

Como ele diz:
Allons, chapeau, capote, les deux poings dans les poches, et sortons!”
Não há melhor hino à viagem do que este.

Diz ele: "Je suis un piéton, rien de plus". Eu sou um caminhante, nada mais.
Esta segunda etapa da sua vida foi dedicada às grandes viagens, mas na Europa.

Mas há uma terceira etapa. Esta sim, a mais deliciosa. É a etapa em que ele decide viajar, sim, mas para o Sul. Para a luz. Para a luz encandescente. E então vai para Chipre, para a Argélia, para todo o sul. As viagens mais extraordinárias, mas que incluem sempre montanhas e deserto. Montanhas e deserto. Dez anos de aventuras, de viagens. E sempre a mesma ideia: é preciso partir, aqui é que não.

Diz ele:
"Ici c'est impossible. Ici c'est atros. Au revoir ici. N'importe qu'os."
Adeus aqui, não importa para onde. Encontram verso mais aventureiro do que este? Adeus aqui? Não importa para onde?

Em 1891, Rimbaud tinha 36 anos. Depois de tudo isto, das fugas da casa materna, manhã cedo, sem dizer nada a ninguém, sem dinheiro, das fugas para Paris, das excursões à Bélgica, da travessia dos Alpes, da ida a Viena, de dez anos no Sul, do deserto, ele que achava que a melhor coisa que tinha eram as suas duas pernas excelentes, o joelho começa a inchar, a inchar...

No hospital de Marselha, amputam-lhe a perna. Mas depois de lhe amputarem a perna, ele quer partir uma última vez. E contra a vontade dos médicos, e da irmã que o acompanha nesses últimos tempos, impõe uma última viagem. Para o Sul. A viagem é um calvário. São 16 as pessoas que contrata para o levar. Mas ainda tem a esperança de conseguir uma perna artificial, que só pesa dois quilos. “Com essa perna vou regressar à viagem”.

Não regressará. Regressa, isso sim, ao hospital de Marselha. Nas memórias da sua irmã, a parte que mais gosto é a do delírio dele. Delírio de quem já tem poucos dias de vida. O delírio: ele vê-se de novo a caminhar. Allons! Quantas vezes pronuncia esta palavra! Allons! “É necessário organizar a caravana, é necessário procurar os camelos”. "Vite, vite! On vous attend. Fermez des valises et partons!"

Morreu no dia 10 de Novembro de 1891. Tinha 36 anos.

E nos registos dos falecidos, no hospital de la Conception, em Marselha, pode ler-se: "Né á Charleville. De passage à Marseille"

De passagem. Porque afinal esta é a marca da vida de um dos maiores poetas que o mundo teve. Ele sempre esteve de passagem. Ele veio a Marselha apenas de passagem. Ele passou por este mundo... de passagem. É isto que caracteriza a viagem: esta arte da passagem. Porque a viagem é a aventura. E "a aventura não é chegar, é partir."

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