quinta-feira, janeiro 09, 2014

Knut Hamsun: Mistérios


"Quando chega a hora da verdade, não são sempre os grandes e gordos zeros que fazem a diferença no total?

Para o raio com os teus zeros. Ponto final. Ficas cheio até à ponta dos cabelos com tanta falsidade e não o consegues aguentar mais. Vais até à floresta e deitas-te sob o céu aberto, onde há mais espaço para aqueles que são estranhos entre os homens e para os pássaros que voam. E um local húmido serve como cama, deitas-te de barriga para baixo no chão pantanoso e retiras prazer em ficar completamente encharcado. E afundas a cabeça em juncos e folhas ensopadas e coisas rastejantes, e macios e pequenos lagartos rastejam pela tua roupa até ao teu corpo e olham para ti com os olhos verdes aveludados; estás rodeado pelos suaves sopros de vento e das árvores, enquanto Deus, no alto, senta-se a observar-te - tu, a ideia mais fixa de todas as suas ideias! O teu humor começa a melhorar e passas a sentir uma estranha alegria diabólica que nunca antes sentiste. Vais até ao extremo da loucura - misturas o certo e o errado, viras o mundo ao contrário; estás tão eufórico como se tivesses acabado de fazer uma boa acção. E porque não? Cedes a poderes que te são superiores, entregas-te a eles e deixas-te levar por fantasias, por uma indulgência cruel no prazer. Tens uma vontade irresistível de glorificar tudo o que antes insultavas, exultas ao pensar em ordenar a paz universal, gostarias de formar um comité para melhorar o calçado dos carteiros, elogiarias Pontus Wikner e farias questão de defender Deus e o universo. Para o diabo com a ideia da inter-relação entre todas as coisas, pois isso já não te diz respeito. Vaias e até fazes escárnio, e a coisa fica por aí. Oh, e o sol brilha! Deixa-te levar, afina a tua harpa e canta salmos como nunca antes foram cantados!

E, logo a seguir, deixas-te flutuar calmamente em ventos e ondas, tornando-te alvo de torrentes idiotas de pensamentos. Deixa a mente divagar, sabe tão bem ceder, parar de lutar. E por que razão lutar? Um viajante que deixou de viajar não deveria ter direito a fazer o que quer nos seus últimos momentos? Sim ou não? Ponto final. E fazes o que o teu espírito manda."

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