quarta-feira, janeiro 08, 2014

José Eduardo Martins: Envelhecimento global


O ano das surpresas começou sem nenhuma. O Governo escolheu, outra vez, o caminho fácil para executar o roteiro que o Presidente também fez seu.

Já não é uma questão de confiança, certeza, crença ou sequer fé. O objectivo é cumprir, dê por onde der, a aparência do Programa de Assistência Económica e Financeira, filho da bancarrota socialista.

Pouco importa já se a austeridade funciona ou não. Foi o que o PS nos fez assinar, foi o que este Governo quis e, agora, vamos todos jogar este jogo de faz de conta que corre bem a ver se o anunciado e inevitável "programa cautelar" permite começar a pensar outra vez. Ou pela primeira vez, consoante a perspectiva.

Como sói dizer-se, o Governo optou por morder a bala. A maldição de Gaspar já só paira como sombra para as memórias menos gastas. Nas suas palavras, o programa falhou o objectivo central da redução estrutural do "deficit" e da dívida pública. A reforma do Estado não se fez… 

Mas agora, chamam-se duradouras a medidas estribadas em contribuições ditas extraordinárias e o Presidente desdiz os seus anteriores pruridos constitucionais sobre confiança e proporcionalidade. Está bem. Que estes seis meses passem depressa enquanto a Europa está disponível para sinalizar que nos manda a botija. Seja. Morda-se a bala, espere-se ainda mais, mas não nos ofendam com a retórica bacoca da reforma ou da convergência para caracterizar o que andam a fazer com os reformados.

Andamos assustados por tantas mudanças que não esperávamos ver na vida e pensar na velhice é seguramente das tais coisas que exigem, dos políticos, a maior franqueza e cuidado.

Manuel Villaverde Cabral caracteriza bem a situação: um "paradoxo do envelhecimento", em que o aumento generalizado da esperança de vida, acompanhado de baixa natalidade e fraco crescimento pode abalar toda a estrutura da sociedade e das relações entre os seus grupos etários.

Além dos riscos associados ao prolongar da vida, cada vez mais isolada e menos vivida em família, parece inevitável que a insustentabilidade dos sistemas de segurança social e de saúde farão agravar o fosso entre gerações muito além do que a competição pelo trabalho. 

No seu brilhante primeiro romance, Bruno Vieira Amaral, escreve sobre "pais encavernados, mas que agora podiam exibir os filhos saudáveis e letrados, prova de que tinham chegado à superfície (…) e tinham-lhes dado bons netos, que orgulho, a vida de formiga para ver chegar aqueles netos".

É, também, a história da mobilidade social que os filhos e netos que aqui escrevem sabem de cor. É a história, hoje irrepetível, da sociedade portuguesa na segunda metade do século XX. 

Hoje, estamos, isso sim, confrontados com a pergunta de Norman Daniels: "Am I my parents keeper?" Vamos no futuro tomar conta dos nossos pais? Como vamos fazer isso ao mesmo tempo que criamos os filhos? E se as pensões vão mesmo minguar, para usar um grande eufemismo, que vai ser de nós quando velhos? A resposta deve ser encontrada na família?

A resposta é não: o envelhecimento global precisa de uma resposta política. De um contrato entre gerações. As muitas hipóteses sérias e até bastantes divergentes – modular montantes de pensões sobre o último salário, relacionar isso com a esperança média de vida, discutir a utilidade do plafonamento – não deviam ser mais adiadas. 

E tudo isto ainda seria pouco, face à ausência de verdadeiras políticas integradas para lidar com o envelhecimento que será marca central do nosso futuro. Em vez disso, vão mais de dois anos em que o Governo cobre a escassez, sacrificando quase sempre os mesmos, usando uma retórica de reforma num sector onde só cuidou de vender remendos. 

Pode isto ser pior? Pode. A ideia, a única, do PS e da oposição em geral é nada fazer. Aumentar a dívida… novamente não há surpresas. E tanto precisávamos delas. 

[Hoje, no Jornal de Negócios]

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