quinta-feira, janeiro 23, 2014

Al Berto, Canto do amigo morto


- quando as mãos encontrarem as mãos, e os olhos de um cegarem no fundo dos olhos do outro. recomeçaremos tudo. arrumaremos os objectos e a roupa nas gavetas. limparemos o soalho e o pó, as paredes e toda a casa. e ao abrir as janelas ao riso dos outros, vagarosamente, revelar-se-á uma réstia de alegria. aquela que não é possível partilhar a sós, aquela que necessita doutros corpos para que o mundo se ponha a existir à nossa volta, surpreendente, único, breve.depois, havemos de fumar um cigarro e olhar o mar. esqueceremos, nem que seja por um instante, a terra que me foi tragando ao longo dos anos. fingiremos a ordem para podermos refazer o caos.

no instante em que se torna possível contar todas as histórias do mundo, tu dirás (como se o tempo não fosse agora de cinza, como se o meu corpo ainda cantasse…):
    - vives como se vivesses por trás das palavras de um poema. existes se me amares.
    e eu direi:
    - dantes, eras uma visão. sentia uma luz acender-se na pele e eras tu. hoje, preparo e bebo venenos para que o brilho daquilo que já não és venha ao de cima, se solte do sangue e estremeça, cintile, e não se apague.
    tu:
    - o medo, o grande medo que se confunde com a serenidade, devora-te. e se nos tocarmos perderemos a inocência; ou talvez tu morras e eu ressuscite. mas uma coisa é certa: não nos cruzaremos, mais, estamos definitivamente sós. eu, enterrado. tu, respiras.
    eu:
    - quero morrer perto de ti, de nada me servirá morrer inocente.
    tu:
    - aqui, nesta treva, o que é que parou no tempo? as nossas vidas? a paisagem? o mar? do qual nunca soubemos a idade…
    eu:
    - quando sentia o teu corpo contra o meu ouvia, lá fora, a fúria do mar. era um presságio de felicidade, mesmo sabendo que só o mar das outras terras é que é belo.
    tu: 
    - continuas a escrever demais, matas tudo com as palavras. olha como eu te olho. olha para mim e cala-te. devias encher a caneta com tinta envenenada.
    eu:
    - o último deserto que me resta de ti é a noite da escrita. nela te mantenho vivo, amante morto. já não possuo bens e não prevejo herança nenhuma. vivo para a travessia do corpo que me sepultou na memória… o teu.
   tu:
   - aquele que se prepara para morrer tem que povoar a alma com tudo o que vai abandonar. não chegues aqui de coração vazio. é insuportável estar morto, sem nada que nos habite. a morte não admite distracções; por isso, a maior parte das pessoas não sabe morrer, desfaz-se.
    eu:
    - não há vergonha em dizer ou escrever isto: amo-te ainda.

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