sexta-feira, novembro 08, 2013

Ondjaki: Uma escuridão bonita


"O escuro às vezes não é falta de luz
mas a presença de um sonho"
(velho muito velho que inventa as palavras)

A luz faltou de repente.

(...)

- Achas que pode caber o quê, no coração das pessoas?
- Muitas coisas. Um poema, uma recordação, um cheiro de infância, um "desejo de estrelas"...
- Como é um "desejo de estrelas"?
- É olhar para uma estrela e desejar uma coisa.
- Ainda lá deseja uma coisa para eu ouvir.
- Desejo que o meu pai não tivesse morrido na guerra.
- E eu desejo que os homens nunca mais inventem guerras novas.
- Como se o saco das guerras estivesse vazio?
- Como se tivessem perdido o saco das guerras.

(...)

- Vou-te contar um segredo - ela começou.
- Ainda conta - perdi o pirilampo de vista.
- Dizem que quando um silêncio chega e fica entre duas pessoas....
- Sim?
- É porque passou um anjo e lhes roubou a voz.
- Tu acreditas em anjos?
- Tu não acreditas em silêncios?
(...)
- Os "desejos de estrelas" podem ser falados?
- Sim. Sentes um?
- Mas não é um fácil. Desejava um arco-íris mesmo agora.
- No céu escuro ninguém consegue desenhar um arco-íris.
- Eu acho que os anjos que roubam vozes conseguem... 
- Eu queria um arco-íris, de presença bem nocturna, tipo uma ponte.
- Uma ponte?
- Para o outro mundo. E vice-versa. Para chamarmos quem tivesse partido ainda em hora de cá estar. Assim o teu pai podia voltar. E também as crianças de todas as guerras.

(...)

Era verdade, tínhamos tempo. A falta de luz também inventava mais tempo para as pessoas estarem juntas, devagar. Para mim a falta de luz era estar ali com ela, de mãos dadas - os meus lábios na espera dos lábios dela. (...) Quando somos crianças, o mundo fica bonito de repente. E simples. Parece um céu aberto com estrelas possíveis de serem apanhadas e guardadas numa gaiola sem paredes de fechar ninguém.

"a beleza às vezes é um lugar
onde o olharjá sabe aquilo que não quer esquecer"
(velha muito velha que destrói as palavras)

[Foi o meu livro mais aguardado do ano. De cada vez que Ondjaki libertava uma frase de "A escuridão..." no facebook, ficava a salivar por mais. Ontem, quando finalmente tive o livro na mão, emudeci. É muito mais pequeno do que imaginei e muito mais bonito do que é possível um livro ser. As páginas são pretas, os desenhos sibilinos de António Jorge Gonçalves brancos. Dá vontade de ficar só a olhar para o livro, mesmo sem o ler. "Uma escuridão bonita" é apresentada como sendo "talvez, a simples estória de um beijo". Num dia em que a luz faltou e o tempo sobrou. É de uma pureza absoluta. Poema vivido por um jovem casal à varanda numa noite em que foi possível ouvir a respiração e saborear o silêncio, saber do coração sem falar, trocar segredos na luz dos faróis e das estrelas, dividir a magia do aconchego e aguardar as mãos nas mãos. Uma explosão de amor em câmara lenta. Descobrir que tudo o que é importante só pode ser simples. É profundamente comovente. Se é, como julgo que está a ser apresentado, um livro infanto-juvenil, isso pode querer dizer que andamos a crescer na direcção errada. É um livro maravilhoso.]


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