quarta-feira, novembro 06, 2013

Luna Andermatt (1927 - 2013)


Entrevista publicada no Weekend do Jornal de Negócios de 2 de Dezembro de 2011
Luna Andermatt vive no Restelo, numa torre de apartamentos onde, em cada janela, o espaço e a vida continuam. A entrevista decorreu com um fundo de ópera, vinda do escritório do marido, Francisco Brás de Oliveira.
Na sala de estar, Luna reuniu recordações, provas de vida e de amor: os trabalhos de iluminura que aprendeu com a mãe; o programa da estreia da Companhia Portuguesa Bailado (no São Carlos em 61). Essa estreia, a casa a vir abaixo, foi uma conquista a dois e, no programa, o marido escreveu: "À loucura queremos dar equilíbrio / Ao medo queremos dar confiança e fé /Ao egoísmo opomos a dádiva de nós mesmos". Luna Andermatt e o marido continuam a querer exactamente o mesmo; exactamente o mesmo é necessário. Todos os dias, Luna Andermatt vai ensaiar para o CCB para estrear, dia 8, com a Companhia Maior (grupo de artistas com mais de 60 anos) a mais recente criação da sua filha, a coreógrafa Clara Andermatt. O corpo nem sempre obedece à mente, mas o fogo, esse fogo ao pisar o palco, não tem dores, não tem rugas, não tem idade.
1. O trabalho no palco tem que ter fogo. Se não tem fogo, não presta. É preciso viver por dentro do trabalho. Se não se vive, não presta. O público percebe muito quando não é sentido. 
Tenho a impressão de que a dança já nasceu comigo. Uma vez, num daqueles eventos do colégio, calharam-me uns versos muito engraçados. Era eu sozinha em palco, com um fato cor de rosa, todo plissado, tinha nove anos. O poema chamava-se "Sempre tive paixão pela dança": "Quando encontro no baile um bom par, não descanso, não paro e não deixo de dançar, de dançar, de dançar…", e fazia assim uns gestos de dança quaisquer, inventados, que ainda ninguém me tinha ensinado. 

2. Creio que as pessoas hoje são mais materialistas. O que interessa é a fatia de pão com manteiga. Mas não é tanto isso que me incomoda - é a falta de sentimentos nobres, de dádiva, nem que seja apenas para com o vizinho. Desapareceram aquelas atenções com que nós nascemos - puxar uma cadeira para o lado, para o outro se sentar, fazer uma delicadeza numa bicha - coisas pequenas, mas que definem o que vai lá dentro. Mas talvez eu esteja a exagerar. Talvez seja porque a televisão gosta mais de nos apresentar dramas. As atitudes nobres não têm atracção para a televisão. 

Quando estou a ver televisão e abrem a boca para discutir política, eu que detesto a cozinha, apetece-me ir para a cozinha. Também há aqueles que falam bem e que ouço do princípio ao fim do discurso, mas esses são poucos em relação aos outros. Repugnam-me as disputas. Não é assim que se conquista. Não é criticando os outros que subimos - a subida está dentro de nós próprios. 

3. Um tio meu, que era governador militar de Lisboa, chamou a minha mãe de parte para uma conversa muito brava: se ela estava a educar-me para eu entrar no Parque Mayer? Eu entrava em óperas no São Carlos. Uma vez, em "Os Pescadores de Pérolas", levava só uma espécie de biquini com um soutien com pérolas e dourados. O meu tio tinha um camarote privativo no São Carlos e eu sabia que ele me estava a ver. Quando cheguei a casa, disse logo: "olha mãe, amanhã tens um telefonema a descompor-te". 

A minha mãe achava bem eu aprender ballet para ser elegante, para ter gestos bonitos, mas não para fazer carreira. Foi o meu marido que me ajudou muito. Conhecemo-nos a bordo de um iate, tinha ele 17 ou 18 anos. Eu sou mais velha dois anos. A minha mãe gostou dele desde que começámos a namorar. Ele incitava-me. Já que tens essa paixão, dizia, cumpre-a. Isso deu-me força. Éramos muitos unidos e tínhamos muita garra, muita gana. 

A ele devo também a estreia da Companhia Portuguesa de Bailado no São Carlos [em 1961]. Não foi fácil. O director do São Carlos exigiu orquestra, não deixava pôr música gravada, e o preço de uma orquestra… Só as partituras da orquestra, na Sassetti, andámos dois anos a pagá-las… E depois era preciso pagar aos artistas e ao maestro. Mas tivemos a casa esgotada. O presidente foi à estreia, era o Américo Tomás nessa altura. E foi tudo com pompa, porque ainda hoje o meu marido não poupa em coisa nenhuma. Eu é que sou o travão. Não tenho outro remédio senão ser poupada, se não já estaríamos na prisão. 

4. A minha avó, pelo lado do meu pai, era alemã, e a família da minha mãe, Luna, vem dos reis de Espanha - ainda tivemos um Papa na família, o Benedito XIII -, de maneira que estes dois sangues têm aqui uma grande efervescência. 

O meu pai era oficial do Exército e morreu quando eu tinha três meses. A minha mãe trabalhava muito, era professora no Instituto de Odivelas e era também uma grande artista. Era iluminista e muito conhecida no estrangeiro. Fez trabalhos para o Hitler, para o Churchill, para o Rei Jorge VI de Inglaterra, e foi convidada pelo bispo da Cantuária para fazer a escritura de casamento da Rainha Isabel. Era uma profissão raríssima, que já não existe, pertencente ao século XVI. Ela só trabalhava em pergaminho - e pergaminho alemão, e não era o pergaminho alemão de hoje nem o da guerra, era o pergaminho alemão de antes da guerra. Ela ensinava-me e dava-me as encomendas mais acessíveis, que fazia questão que eu assinasse, e eu assinava M de [Maria Antónia] Luna. Ainda fiz 80 e tal trabalhos. A minha mãe fez mais de 1300 trabalhos e não fez um único igual a outro. Tinha um gabinete cheio de preciosidades. Trabalhava com ouro em pó e tinha que ser autêntico. Morreu com 82. Nos últimos anos foi viver para nossa casa. Ainda vivíamos na Infante Santo, naqueles prédios altos, onde tínhamos uma vista linda para o rio, e de onde tínhamos visto a inauguração da Ponte 25 de Abril. 

5. Estive em Inglaterra com uma bolsa de estudo e aí aprendi muito, não só tecnicamente. Quando voltei, ainda dancei, mas já estava com a mente só na ideia de criar algo que deixasse raízes. Não havia em Portugal uma companhia oficial, e os bons bailarinos iam para fora. Magoava-me ver tanta gente com valor mas sem futuro. 

Tive muitas desilusões - andei sete anos de gabinete em gabinete -, mas com o David Mourão Ferreira tive ouvidos, porque ele também era um artista e convidou-me para o conselho nacional de cultura e compreendeu a necessidade de dar apoio aos bailarinos.

Realmente orgulho-me muito de ter criado a Companhia Nacional de Bailado, em 1977. 

Parece-me que a companhia foi um embrião, um pontapé. Despertou o interesse e espírito da gente nova na altura e depois a dança teve uma explosão no nosso país. Observei como foi crescendo e fiquei muito feliz com isso. E, então, a dança era uma coisa, depois passou a ser outra, e agora é o futuro. 

6. Eu e o meu marido nunca deixámos de trabalhar. O meu marido continua a ir todos os dias para a Universidade [Lusíada] de que foi um dos fundadores, onde já não dá aulas, mas onde é uma espécie de conselheiro. 

Eu tenho uma vértebra deslocada na coluna, e às vezes quando tenho muitas dores, penso: hoje não vou ao ensaio… Mas saio de casa, vou mesmo, e nunca deixei de ir porque tinha dores. 

Não me vejo numa cama. Morreria de angústia em vez da doença. Se Deus me enviar um relâmpago, agradeço muito, porque quero viver até ao fim. Não sei o que é que me está reservado, mas gostava de morrer de pé.


A subida está dentro de nós próprios.

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