quinta-feira, agosto 15, 2013

José Miguel Gaspar: Coura, Dia 2

Alabama Shakes
Alabama Shakes

"- Se fechares os olhos quando ela canta o que é que ela te parece?

- A mim parece-me um homem. Mas um homem mais baixo. 

Não sabíamos que Brittany Howard era tão gorda e tão grande como uma cama (eu pelo menos não sabia, sou dos antigos, continuo a consumir só os áudios, não vejo os vídeos), nem que o baixista Zac é um sósia de Zack Galifianakis, mas um Zack imenso e sério e petrificado que só mexe dois dedos debaixo da túnica e da barba inamovível. À quinta canção, já eles tinham tocado 'Hang loose' e 'Hold on', lenta e linda que nos pôs a dançar e a dizer que sim com o torso, como se fossemos salomónicos que dançam sem cabeça e sem membros, e ela já estava a dizer que gostava muito de nós (mas disse-o enrolado, na sua língua americana cheia de sul). Ao sexto tema, com a tenda Vodafone FM atulhada e cinco vezes mais gente que transbordava até às escotilhas, ela parou e disse isto: 'Esta canção não é uma canção triste. Esta canção é sobre aprender a lição'. E atacou, com lentidão encorpada e dulcíssimos golpes (atacou: a canção faz estremecer e ter frio), e entrou-nos com aquela voz grave e de agudos estrídulos, como uma catana pelo coração adentro com 'Heartbreaker', a canção fulminante dos amores prostrados: 'Why, why did you have to slice so wide baby/How was I supposed to know you was a heartbreaker'. Aquilo, e aquilo foi o concerto da noite, é Alabama Shakes, é soul do sul: três acordes, blues e raízes gospel, doe quando é lento, arde e rosna quando é rápido. Os mais exagerados, os do meio e da frente, os que saíram a ressumbrar, falavam na qualidade confluente de vários espíritos, três mortos e um vivo, que ela, Brittany Howard, incorpora, como se ela fosse duas mulheres e dois homens: Winehouse e Simone, Ottis e Prince, nem menos. No fim ela parecia uma cama suada, feliz e desgrenhada.


U.M.O.


Ao vivo, a pop psicadélica da Unknown Mortal Orchestra (trio, EUA) é uma coisa fuzzy emaranhada cheia de wah wahs. Em disco não, mas ao vivo sim, parece-me música para ancas tortas ou para lagartos que levam choques eléctricos e ouvem excessivamente Tame Impala. Ali, na tenda preta que é sempre pequena para tanta gente (e que tem um chão demasiado duro), a voz do vocalista Ruban Nielson parece batida pelo vento, sai fatiada como as vozes de certos desenhos animados agudos, e ele toca a guitarra como se fosse um cossaco ou como se estivesse sempre prestes a perder o chão. Os da frente, os surrealistas e os desesperados, os que estão no vórtice do som, gostaram muito e guincharam, mas não foi grande pistola. 

Bombino

Omara Bombino não é nenhum Omar Souleyman (Souleyman é só uma cassete e uns Ray Ban de kaffyeh com pernas curtas) e já tem pelo menos três recordes de Coura 2013: é campeão do salto em comprimento lento (tem mantras de 21 minutos que são faraónicas cavalgadas eléctricas); foi o único a fazer encore (nos festivais de agora o poder legislativo do improviso foi absorvido pelo poder executivo do patrocinador e da sua ditadura da pontualidade); e foi o que teve mais e melhor crowdsurfing (o único concerto onde se nadou licenciosamente e sem peias, com pernas pelo ar e mergulhos de bruços no mar de braços do povo). Bombino, um tuareg do Niger que se dedicava à desértica contemplação e à pastorícia, salta agora com o robe dourado de Cassius Clay, como se fosse um boxer invicto que luta de guitarra. Parece aprendeu a tocá-la a decalcar riffs de vídeos de Jimi Hendrix e de Mark Knopfler (mas também podia ter aprendido no Air Guitar, o jogo dos guitarristas imaginários). Graças a Deus e a Alá, aprendeu mais com os 15 minutos psicoeléctricos do 'Voodoo child' do que com toda a discografia do sultão serôdio do swing.

O seu jogo é hábil: 

canções construídas em torno de riffs resistentes (são enganosamente simples mas estão em movimento perpétuo de justaposição e overdub), polinização cruzada de rock, blues e deserto, e aquele transe inacabável do trance que garante as alienações e os arroubos de espírito. O seu baixista, o único inteiramente enrolado no tagelmust branco , é o meu cromo favorito, um baixista de ferro que bamboleia sem nunca despegar os pés, como se tocasse atado a camelo que vai num trote interminável." 

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