domingo, julho 21, 2013

Ivo Andric: A ponte sobre o Drina


“A juventude suporta facilmente a presença dos piores instintos e vive e movimenta-se livre e habilmente no meio deles.

Sempre houvera e haveria noites estreladas, constelações esplendorosas e luar por cima da cidade, mas nunca tinha havido ainda, e só Deus sabe se voltaria a haver, jovens daqueles que, com semelhantes conversas, sentimentos e ideias, mantivessem tais vigílias à porta. Era uma geração de anjos rebeldes, precisamente naquela fase, que passa tão depressa, em que ainda guardam em si todo o poder e possuem todos os direitos dos anjos e também o orgulho ardente dos rebeldes. Aqueles filhos de camponeses tinham recebido do destino, sem que para isso fosse necessário nenhum esforço especial da sua parte, uma entrada livre no mundo e a grande ilusão da liberdade.

Com as suas inatas características provincianas, partiam para outros meios e escolhiam mais ou menos livremente, de acordo com as suas inclinações, a disposição do momento ou os caprichos do acaso, os estudos a seguir, os tipos de distracção e o círculo dos seus amigos e conhecimentos. Na maior parte, não eram capazes, nem sabiam como aprender e fazer uso daquilo que conseguiam ver, mas não havia um único que não tivesse a sensação de que podia agarrar o que desejava e de que tudo o que agarrasse era dele. (…) A vida estava na sua frente como um objecto, coo um campo de acção aberto aos seus sentidos libertados, à sua curiosidade intelectual e às suas proezas sentimentais, que não conheciam limites. Todos os caminhos lhes estavam abertos, até ao infinito; em muitos deles nem sequer haveriam de pôr nunca o pé e, no entanto, a inebrtiante volúpia de viver que os dominava alimentava-se da possibilidade que tinham (pelo menos em teoria) de escolher livremente qual o caminho que queriam seguir, e, se assim o quisessem, vaguear de um para o outro.

Tudo aquilo que outros homens e outras raças, noutros tempos e noutras terras, tinham conseguido atingir ao longo de muitas gerações, através de séculos e séculos de esforço, à custa de vidas, de renúncias e de sacrifícios maiores e mais valiosos do que a própria vida, abria-se agora na sua frente como uma herança casual e um dom perigoso do destino. Parecia fantástico e improvável, mas era verdadeiro: podiam fazer da sua mocidade o que muito bem entendiam num mundo em que as leis da moral social e pessoal, chegando até às distantes fronteiras do crime, padeciam nessa época duma plena crise, sendo livremente interpretadas, aceites ou repudiadas por cada indivíduo ou cada grupo. Podiam opinar livremente e julgar sem restrições; ousavam dizer o que lhes apetecia e para muitos deles essas palavras representavam autênticas façanhas, que satisfaziam a sua atávica necessidade de heroísmo e de glória, de violência e de destruição, ao mesmo tempo que não lhes impunham nenhuma obrigação de agir nem acarretavam nenhuma responsabilidade palpável. Os mais dotados de entre eles desdenhavam do que tinham de aprender e subestimavam tudo o que eram capazes de fazer e tinham orgulho daquilo que não sabiam e entusiasmavam-se com o que não podiam realizar. É difícil imaginar uma via mais perigosa de entrar na vida ou um caminho mais seguro para façanhas excepcionais ou para uma derrocada total. Os melhores e os mais fortes deles lançavam-se à acção com um fanatismo de faquires, para nela se queimarem como moscas e serem logo glorificados pelos companheiros como mártires e santos (visto que não há geração que não tenha os seus santos) e colocados em pedestais como exemplos inacessíveis.


Cada geração humana tem as suas ilusões próprias no que respeita à civilização; umas acreditam que estão a tomar parte no seu crescimento, outras que estão a assistir à sua extinção. A verdade é que ela brilha, arde e extingue-se sempre consoante o lugar e o ponto de vista. Esta geração, que agora discutia filosofia e questões sociais e políticas nas portas sob o olhar complacente das estrelas e acompanhada pelo murmúrio das águas do rio, apenas era mais rica em ilusões; em tudo o mais era semelhante a qualquer outra. Tinha a convicção de que estava ao mesmo tempo acendendo as primeiras luzes de uma nova civilização e extinguindo as últimas chamas de uma outra que estava praticamente consumida. O que a caracteriza particularmente é que há muito tempo não surgia uma geração que tivesse sonhado mais com a vida e da vida falado mais e com mais audácia, bem como dos prazeres e da liberdade, e que, ao mesmo tempo, tão pouco tivesse recebido da vida, mais tivesse sofrido, mais fosse escravizada, morrendo pelos seus ideias. Mas nesses dias do Verão de 1913 existiam apenas uns indícios ousados mas vagos de tudo isso. Tudo tinha ainda a aparência de um novo e excitante jogo, jogado ali, na velha ponte, que brilhava ao luar daquelas noites de Julho, limpa, jovem e inalterável, forte e encantadora na pureza das suas linhas, mais forte do que tudo o que o tempo podia trazer e do que os homens podem imaginar ou fazer."

[Talvez o livro mais maravilhoso que li a seguir a "Gente independente", do Laxness. Seguramente daqueles livros que ficam remoer na cabeça e que voltam sempre. Obrigada, Esquilo.]

Sem comentários:

Enviar um comentário