sábado, julho 27, 2013

Bernard-Marie Koltès: Na solidão dos campos de algodão


"Não há verdadeira injustiça sobre esta terra senão a injustiça da própria terra, que é estéril pelo frio ou estéril pelo calor e raramente fértil pela doce mistura do frio e do calor; não há injustiça para quem anda sobre a mesma porção de terra submetida ao mesmo frio ou ao mesmo calor ou à mesma doce mistura, e todo o homem ou animal que pode olhar nos olhos para outro homem ou animal é seu igual porque caminham sobre a mesma linha fina e plana de latitude, escravos dos mesmos frios e dos mesmos calores, ricos da mesma riqueza e pobres de igual pobreza; e a única fronteira que existe é entre o comprador e o vendedor, porém incerta, os dois possuem o desejo e o objecto do desejo, às vezes vazio e rugoso, com ainda menos de injustiça do que a do ser masculino ou feminino entre os homens ou os animais. 

Procura atingir-me, não conseguirás; experimenta ferir-me. Se o sangue correr, será dos dois lados, e inelutavelmente, unir-nos-á... Não há amor, não há amor. Não, não conseguirás nada que não exista já, porque um homem primeiro morre, e depois procura a sua morte, e finalmente encontra-a, por acaso, no trajeto arriscado de uma luz a outra luz, e diz: então era só isto?"

(...) Não há vergonha em esquecer à noite aquilo que lembrarmos de manhã. A noite é o momento do esquecimento, da confusão, do desejo tão quente que se torna vapor! A manhã, porém, apanha-o como uma grande nuvem acima do leito. Seria estúpido não prever à noite a chuva da manhã. Se, por hipótese, me dissesses que não tens nenhum desejo a exprimir, por cansaço ou por esquecimento, ou por excesso de desejo, que leva ao esquecimento, por hipótese de retorno, dir-te-ia que não te cansasses mais, tomasses o de qualquer outro. O desejo furta-se, mas não se inventa (...) e um desejo toma-se mais facilmente que um hábito.

Portanto, não me recuses dizer, peço-te, qual é o objecto da tua paixão, da tua febre do teu olhar sobre mim. Se se trata de não ferir a tua dignidade, pois bem, diz-mo como quem diz a uma árvore, ou face a um muro de uma prisão ou na solidão de um campo de algodão, no qual nos passeamos nus, à noite. Diz-mo, sem sequer olhar para mim, pois a única e verdadeira crueldade desta hora do crepúsculo em que nos encontramos os dois não está em um homem ferir o outro, ou em o mutilar, em o torturar, ou em lhe arrancar os membros ou a cabeça, ou mesmo em o fazer chorar. A verdadeira e terrível crueldade é a do homem, ou do animal, que torna o homem, ou o animal, incompleto, que o interrompe como as reticências no meio de uma frase, que se desvia dele depois de o ter visto, que faz do homem, ou do animal, uma ilusão do olhar, um erro de julgamento, um erro, como uma carta que se iniciou e se amarrotou brutalmente, logo a seguir a ter escrito a data.

(...)As recordações são as armas secretas que o homem guarda consigo quando é despojado, a última franquia que obriga à franquia em compensação, a nudez última."


[Dos meus dramaturgos de eleição]

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