quarta-feira, abril 10, 2013

Gertrude


Um ator e uma atriz fazendo em italiano e português um texto de Shakespeare. Se isto não é a Europa, o que é a Europa? Numa sala de ensaios do Teatro Carlos Alberto, no Porto, Fiammetta Bellone e Simão Do Vale trabalham cenas de Gertrude – uma peça a partir de Hamlet; um Hamlet pelo ponto de vista da mãe. Mexem-se dentro das palavras, como se o pano negro que lhes serve de chão e a roupa negra que é um chão-de-vestir fossem a própria tinta shakespeariana. Tinta antiga, tanta sombra, sangue novo. Umberto Eco terá dito que a língua oficial da Europa se chamava Tradução. Outra hipótese era chamar-se Shakespeare.

Herberto Helder escreve:

“No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se/ pelo meio dos ossos filiais,
pelos tendões e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte”

 
É uma verdadeira blasfémia pôr este poema entre aspas, deixá-lo atravessado de barras inclinadas no museu das citações, e blasfémia ainda maior é interrompê-lo a seguir. Perdoem-me, por favor. Mas, para falar deste Gertrude, era aqui que eu queria chegar. Do ensaio que vi (era manhã nesse dia portuense mas na minha memória, que estranho, é noite e noite alta), o que mais me impressionou traduz-se exatamente assim: “Pelo meio dos ossos filiais”, “calmas mães intrínsecas”, “enquanto o amor é cada vez mais forte”.

Jacinto Lucas Pires

Teatro Carlos Alberto, Porto
Até14 de Abril
De quarta a sábado: 21h30
Domingo: 16h00

Sem comentários:

Enviar um comentário