terça-feira, março 12, 2013

No dia em que Raul Brandão faria 146 anos



Quando morreu, em 1930, Amâncio Cabral escreveu sobre Raul Brandão na Ilustração (revista que existiu de 1926 a 1939, e que pode ver-se, e vale a pena ver, na Hemeroteca Digital):

"O que Raul Brandão tinha e os demais, raramente, têm não se aprende nem se ensina. (...) O artista de olhos claros que desapareceu era demasiadamente homem para ser estátua; o seu coração pulsava demais pelos que sofrem e choram e gemem doloridos, para poder atingir o sarcasmo e a frieza analítica que caracterizam a maioria dos génios catalogados, gigantes de mão dura que nos amarfanham e plasmam os sentidos sem perder a sua inalterável frieza, a frieza do mármore incomovivel de todos os monumentos. Mas a sua silhueta, aureolada da ternura infinita da sua obra melancólica, mais há-de crescer, cada vez mais, pois quanto mais distante estiver a sua vida terrena, mais a sua arte e a sua espiritualidade hão-de estar connosco."

Um ano depois da sua morte, a mulher, Maria Angelina, partilhava "O pobre de pedir", o último livro de Raul Brandão, pedindo-lhe desculpa pelo "atrevimento", mas dizendo que não sabia se devia "guardar numa gaveta" o livro em que "há páginas mais belas em dor, em humanidade, do que as Dostoievski".

Fica o excerto, tão actual, no dia em que Raul Brandão faria 146 anos.

"Já não posso com estes tipos. A aldeia está a transformar-se numa coisa amarga, numa coisa vasta e amarga, que se não fez para os meus nervos delicados. A verdadeira dor e a verdadeira piedade têm um peso insuportável. Já não posso. Já não posso com esta mulher que passou por mim e olhou para mim - e eu fiquei para sempre ligado à sua figura inexpressiva e gasta -, nem com o cego das Uveiras, que a cegueira tornou mais alto, e que não bole, fixando o céu, como se esperasse do céu um acto extraordinário, nem com todas estas figuras escavoncadas, que passam os dias da vida monótona, repetindo os mesmos gestos, cheios de terra e em contacto permanente com a terra:

- E Jesus que não vem!
Já muitos o viram. É um pobre - é um pobre de pedir -, é um fantasma. Ninguém sabe dizer como é esse vulto que desaparece na volta dos caminhos. Não traz sacola, e não passa talvez duma sombra. O seu silêncio mete medo. Viram-no, e quem o vê fica atónito como o Manco, que anda desvairado pelo alto dos montes, a desafiar o vento com um pau e a pedir lume ao fogo dos relâmpagos. Viu-o o senhor José, espesso como granito, que nunca pôde comunicar comigo. Viu-o e calou-se. Mas sei que viu o pobre, porque se pôs a olhar para mim duma maneira singular... e o Manco teima e diz, com a ponta do cigarro requeimando ao canto da boca:

- Jesus Cristo há-de voltar para nos dar a Terra.
- Voltar?!
- Os pobres hão-de ser sempre pobres."

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