sexta-feira, fevereiro 22, 2013

Viagens ao sofrimento do povo português



Textos dispersos de Raul Brandão são um espelho perfeito da sociedade portuguesa entre finais do século XIX e as primeiras décadas do XX. Fundamental.



Há páginas inesquecíveis na literatura portuguesa. E algumas delas foram escritas por Raul Brandão, a começar por "Húmus", livro sobre as incertezas da existência e sobre os homens que, olhando para o universo, procuram respostas sobre o mal. Lá se escreve, de forma cortante: "A honradez deste homem assenta sobre uma primitiva infâmia. O interesse e a religião, a ganância e o escrúpulo, a honra e o interesse, podem viver na mesma casa, separados por tabiques. Agora é a vez da honra - agora é a vez do dinheiro - agora é a vez da religião. Tudo se acomoda, outras coisas heterogéneas se acomodam ainda. Com um bocado de jeito arranja-se sempre lugar nas almas bem formadas". Raul Brandão tinha uma pena iluminada: as suas frases são sinais de sol e sombra, de dúvidas e algumas certezas. Mas, sobretudo, conseguiu descreveu o país e o seu povo, os seus sonhos e superstições, como poucos outros. Fala da Decadência e por isso consegue ser tão actual."A Pedra ainda espera dar flor", uma compilação de textos dispersos escritos entre 1891 e 1930, com uma sólida organização de Vasco Rosa, ajuda-nos a conhecer melhor o seu mundo. Os seus textos sobre os ciclos do tempo são de uma beleza estonteante (leia-se "Maio", por exemplo), ou sobre a cultura portuguesa revelam a solidez do seu pensamento (fala-nos de António Nobre, de Eça, de Camilo, de Almeida Garrett, de Teixeira de Pascoaes, de Fialho de Almeida, dos Bordallo Pinheiro, com uma elegância e conhecimento únicos), do teatro ou dos pescadores. Fala da vida e da dor, temas sempre tão presentes em toda a sua obra e isso acaba por nos tornar mais ricos. Está aqui a alma, o sangue e o suor do povo português, a viver sempre entre a pobreza e a decadência, com momentos de euforia porque julgou descobrir o destino.


Há uma lógica de derrocada total nestes textos. E eles são uma boa forma de partirmos para os seus livros (não só "Húmus" mas também "Os Pescadores", "As Ilhas desconhecidas" ou "História de um Palhaço". Em "O Diário de K. Maurício", há uma frase que parece escrita para a história de Portugal e dos portugueses: "Habituou-se a sonhar e a ter medo de viver". Às vezes, ao lê-lo, parecemos estar a ler poesia em forma de prosa, tal a riqueza das imagens que desfilam defronte dos nossos olhos. Este livro agora editado, que nos traz textos de diferentes fases da vida de Raul Brandão, mostra-nos a capacidade que tinha para ver o horizonte sem preocupações de fronteiras no seu afã para desvendar o destino dos homens. Depois há a vertigem da dor sempre presente nas suas palavras: "os mais destemidos pescadores portugueses são os poveiros: quase sempre o seu túmulo é o fundo do mar". Que palavras mais fortes servem para descrever o sofrimento do povo português, o trabalho duro para garantir a fuga ao limiar da pobreza.

É isso que sobretudo fascina na escrita de Raul Brandão: mesmo quando fala da dor e do mal, faz isso de forma poética, como se as palavras pudessem aveludar os sentimentos e estes não fossem espinhos de uma rosa. Bonita mas que pica. "A pedra ainda espera dar flor" é uma forma magnífica de procurarmos descobrir a sua obra.

[Fernando Sobral, hoje, no Jornal de Negócios]

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