terça-feira, janeiro 22, 2013

Ruben Fonseca: Pequenas criaturas


“Sei que temos esse jantar, não se preocupe, estou vendo se encontro aquele vestido... Vou a outras lojas... Tchau.”
A mulher desliga o celular, voltam a se abraçar na cama, esquecem a vida.
“Esse coração batendo forte é o meu ou o seu?”
“O nosso, o suor também é nosso, mas esses fios de cabelo na sua mão são meus.”
Silêncio.
“Até entrar no meu carro e chegar em casa. Às vezes tenho vontade de me drogar, mas sou muito medrosa para fazer isso.”
“Não ia resolver nada.”
“Quando cheguei em casa ontem ele me perguntou, Você foi ao cabeleireiro para fazer um penteado desses? Inventei uma resposta... Estou andando sobre carvões em brasa... Você não entende, você sai de casa e bate a porta, eu tenho que deixar instruções com empregadas, dar explicações, e na volta tudo se repete, novas determinações, providências, desempenhos, embustes. O lar é um monstro que nunca tem as suas exigências saciadas, está sempre pedidndo mais. À noite tenho de ir a festas e jantares com ele e os nossos amigos, onde me mostro alegre, e sou a que ri mais alto, a que fala com mais entusiasmo, mas quando chego em casa estou com vontade de vomitar e preciso tomar um tranquilizante para poder dormir.”
“Eu te amo.”
“Não precisa fazer essa cara de cachorro sem dono, esquece o que eu disse.”
Ela o beija. Fodem novamente.
“Você puxa os meus cabelos com força. Você é sádico e maluco. Um pouco sádico e muito maluco.”
“É sem querer.”
“Mas eu gosto, se nós tivéssemos um jogo de dominó você jogaria comigo?”
“Acho que sim. Quer ouvir uma música? Aquela que você gosta.”
“Me deixa triste. Não fica olhando para o tecto.”
“Estou deitado de barriga para cima.”
“Também estou deitada de barriga para cima e estou olhando para você. Quer que eu diga o que estou vendo?”
“Não.”
“E você, agora que está olhando para mim e o seu pescoço está doendo, vê o quê?”
“A mulher mais bonita do mundo.”
“Quer que eu chore?”
“Não.”
Ela chora, sem soluçar, mas as lágrimas brilham tanto que ele as vê, mesmo olhando para o tecto.
“Meu marido está desconfiado.”
“A vida é um jogo de soma zero.”
“O que quer isso dizer?”
“Um jogo em que a soma dos ganhos e das perdas dos jogadores é sempre zero.”
“E o que acabamos de ganhar é zero?”
“Só quando formos somar com as perdas, as perdas nunca são zero.”
“Isso é uma coisa horrível, não é? Olha para mim.”
“Estou olhando.”
“Você está com medo. Medo que eu me mude para cá. De que eu me torne um peso para você.”
“Não diga isso.”
“Eu vivo com medo o tempo todo, mas o meu medo não é maior do que o meu amor. Diga, o seu medo é maior do que o seu amor?”
“Não estou com medo.”
“Mas esse seu medo de eu me mudar para cá só acontece às vezes, se acontecer sempre o seu amor vai diminuir. E acaba, é isso?”
“Temos que ser lúcidos.”
“A razão sobre os sentimentos, que coisa mais árida, você não respondeu.”
“Não sei responder.”
“Você não sofre por saber que eu, eu...”
“Você?”
“Durmo toda a noite com outro.”
“Prefiro não falar sobre isso.”
“Você não sabe fazer nada para ganhar dinheiro, e se formos morar debaixo da ponte o nosso amor acaba, só podemos viver dentro de um certo esquema. É isso que você não sabe responder?”
“Já estive internado. Coisas da cabeça, não é contagioso.”
“Você nunca me disse isso.”
“Estou dizendo agora. Já trabalhei numa loja de discos e numa livraria, mas me mandaram embora.”
“Também nunca me disse isso.”
“Estou dizendo agora.”
“Nunca trabalhei, nem escrevi, nem pintei, nem coisa nenhuma, saí da faculdade para casar, não terminei o curso, estudava biologia, uma órfã de pai e mãe estudando biologia, você acredita?”
“O que uma orfã deve estudar?”
“Talvez contabilidade, informática. Mas você sofre ou não? Por eu dormir toda a noite com outro?”
“Fico infeliz.”
“Fica infeliz mas não chora, eu choro sempre.”
“Minha mãe não me ensinou a chorar.”
“Ela já morreu, não morreu? E o que ela dizia? Homem não chora?”
“Ela não chorava.”
“Mas tinha um marido e amava outro homem? Um artista, um intelectual incapaz de ganhar dinheiro com o seu trabalho? Desculpe o intelectual, sei que você não gosta dessa palavra.”
“Às vezes, sinto vontade de chorar, quando você vai embora e eu fico sozinho, mas não consigo.”
“E quando a dor é física? Nem assim?”
“Tomo analgésico. Enxugue o seu rosto com o lençol.”
“Você não acha que temos que fazer alguma coisa? Ou vamos esperar a vida corromper nossos sentimentos?”
“Que coisa?”
“Já pensei em me matar, depois de matar você. Pára de olhar para o tecto. Não estou brincando.”
“Daqui a pouco o meu pescoço vai doer.”
“E eu?”
“O que significo para você?”
“Alegria, deleite, companhia, amor.”
“Mas a arte é mais importante que tudo... E se quando você morrer de velho, tudo o que você fez for esquecido, jogado no lixo? Você não tem coragem nem de cortar a sua orelha.”
“Se você quiser, eu corto.”
“Então corta agora.”
Ele se levanta da cama. Depois de algum tempo, volta com um pano apertado de encontro à face, sangue escorre do seu pescoço, ele estende a outra mão fechada para ela, abre a mão. Dentro está a orelha decepada.
“Um presente para você.”
“Meu deus, você tem que ir para um hospital.”
“Esterilizei a faca antes e limpei o ferimento com um anto-séptico, a hemorragia passa logo.”
“Sua mãe, onde quer que ela esteja, deve estar muito orgulhosa de você.”
“Estou contando com isso.”
“Sabia que ia ter que cortar uma orelha para mim?”
“Comprei uma faca afiada.”
“E eu tenho que fazer o quê, por você?”
“Não sei, mas não é cortar os pulsos.”
“Acho que estamos enlouquecendo.”
“Eu já cheguei no meu ponto. Não passo disso.”
“Posso te contar uma coisa? Meu analista anda preocupado comigo. Ele não sabe, mas acho que ainda não cheguei no meu ponto. Tenho que ir embora. Posso levar a orelha comigo?”
“É sua, chegando em casa, põe num frasco com formol, a farmácia vende.”
“Mas o que eu gostaria mesmo é que você também chorasse.”
“Isso é mais difícil.”
“Nunca deixarei de te amar.”
“Nem eu.”
“Amanhã é sábado.”
“Eu sei, a gente não vai se ver, nem no domingo.”
“Talvez você chore, neste fim-de-semana.”
“Vou tentar:”
“Pinta uns girassóis.”
“Não sei pintar aqueles gisrassóis. Talvez se sofresse de laucoma.”
“Escreve um soneto.”
“Não sei escrever sonetos.”
Ela se veste, percorre o quarto e a sala para ver se não está esquecendo de alguma coisa, bare a porta da rua.
“Soma zero?”
Fecha a porta, sai.

Sem comentários:

Enviar um comentário