quarta-feira, julho 06, 2011

O quarto F: Sei o que fizeste no Verão passado


No Verão passado ainda não éramos lixo. Ainda não tínhamos a sobrevivência dependente de um Fundo Monetário Internacional, ainda não estávamos na bancarrota - ou estávamos, mas não sabíamos, ainda não nos tinham sobrecarregado com impostos, ainda não nos tinham cortado subsídios e asas. Ainda não tínhamos a cabeça a prémio. Mesmo assim, no fim do Verão passado, mais de dez anos em peregrinação de fé por festivais, decidimos pendurar as botas. Não porque os festivais já não valessem a pena - valem, muito mesmo -, não porque cultivássemos essa superstição de não voltar aos lugares onde fomos felizes, mas porque não queríamos ser espectadores da nossa própria decrepitude. Não queríamos manchar a memória dos tempos em que arranjar lugar na primeira fila de um concerto era mais importante do que arranjar onde dormir, em que ir e voltar do Porto ao Alentejo no mesmo dia nos parecia mais do que razoável, em que engolir pó de dia e apanhar chuva à noite não nos beliscava o entusiasmo. Decidimos pendurar as botas antes que as botas nos pendurassem a nós.

Mas depois começou outro ano, vieram os discos novos, as primeiras bandas, as emergentes, as confirmadas, um frémito, uma contagem decrescente, e não foi preciso chegar a Abril para sabermos que rapidamente daríamos o dito por não dito. No Optimus Alive, onde no Verão passado comungámos do memorabilíssimo concerto dos XX de telemóvel na mão, insistindo em partilhá-lo com quem lá não estava e devia, 40 minutos que pareceram 40 segundos; onde participámos na brutal apoteose dos Pearl Jam, milhares de voz no ar a explodir em Betterman, a espinha a arrepiar-se, Eddie Vedder a despedir-se com o país ajoelhado aos pés e a bandeira de Portugal às costas, nesse mesmo Optimus Alive são esperados este ano 170 mil sujeitos. E ainda dizem que há crise, dirão tantos a fazer contas: 170 mil vezes 50 euros por dia somam 8,5 milhões de euros. Será muito, mas muito longe da soma que salvaria o país. Salva o bocadinho de nós que também é Portugal -  nós que também temos direito a um F, que não é fado nem futebol nem Fátima. Para irmos directos ao assunto, é mesmo uma questão de primeiros socorros. Gostar muito de concertos é um privilégio tão grande como gostar muito de ler: a literatura salva-nos o ano inteiro; a música, ao ar e ao vivo, salva-nos no Verão. Funciona como soro recebido intravenosamente, abrindo potencialmente caminho para um resto de ano mais feliz. Há quem adore odiar festivais de Verão; nós adoramos adorá-los. Soou o tiro de partida. E como dizia Vedder, neste mesmo recinto, "Aproveitem bem a noite, não sabemos quem estará cá amanhã." 

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