sábado, março 05, 2011

Miguel Jesus: Inês morre

Acto I
Não há maior obra do que dar ao condenado a luz de mais um dia...
Tão prisioneiro do erro é um idiota como da virtude o homem justo. (...) Digo-te que todos nós também somos natureza e que da nossa longa lista de castrações, a primeira é a que ao nascimento obriga. Depois dessa, alguns têm o azar do pensamento... Eu estou mais livre por tudo aquilo que desconheço. Pois não será prisão tanto aquilo que se sabe ou desconhece, mas sim o tanto que esse tanto a tanto obriga. Do que sabemos cresce em nós sempre um dever e é esse encargo que temos o dever de ignorar. Quem muito sabe pouco sente o peso ao mundo, mas não é fácil saber criar essa distância. Ser impassível não é ser desinteressado. É na maior irresponsabilidade que eu sei ser responsável pela minha liberdade. (...) Está-se mais perto da salvação quanto mais perto do trono se estiver, sem no trono se estar. Está-se mais perto da liberdade quanto mais perto do amor se estiver, sem o amor amarrar.
***
Não é só com a lei que se governa. Quantas pessoas lêem as leis? E quantas realmente as compreendem? Não é pelas palavras que se escuta um rei, mas pelos gestos. E um gesto incendiado vale mil palavras frias. O povo aclama leis que não conhece porque já só vê o fogo que as rodeia e até palavras injustas podem ser ouvidas como actos de justiça.
***
Entre a palavra que alguém diz e a palavra que alguém guarda, longo é o caminho da ilusão. As ofensas de hoje são os louvores de amanhã, as maldições vitalícias tornam-se mera superstição e até os presságios mais sombrios não virão a ser mais do que anedotas. Mal entendidos, mal proferidos, mal intencionados, os verbos voam sem consequência. Mesmo aquilo que está escrito acaba por se perder entre as cinzas. 
Algumas palavras aquecem demasiado o sangue.
Mas só a paixão pega fogo aos costumes e às leis. 
A quem muito o sangue arde o sangue queima.
***
O que se ouve não é o limite do audível. É por atentares nos segredos das palavras que perdes as confissões do corpo. Não se agita com conversas quem só tem silêncio para oferecer. (...) Quem muito se gasta a falar sempre perde o raciocínio. (...) Que o pensamento é o nosso limite, mas não é o limite do possível. Que a noite atravessa o reino. E que não há maior obra do que dar ao condenado a luz do dia. Que se podem ignorar os laços do amor mas já não tanto as amarras dos contratos.
***
Acto II
Todo o sangue escorrido, seja mais ou menos sofrido, em breve se torna sangue esquecido. (...) A causa da morte nasce do que a sua vida causaria. São os passos de cada um que o prendem ao seu caminho. E a quem vive na noite deve mostrar-se a luz do dia. (...) Ganha-se melhor a guerra que não se chega a travar. E a liberdade e independência que não se chegam a perder. 
***
Hei-de salvá-los da morte até que os salve da vida. 
Compete aos que nascem livres fazer ouvir a sua liberdade.
E saber silenciá-la quando ela chama por silêncio.
O meu sangue arde. O meu sangue arde.
***
Está no coração da sombra a vertigem do infinito. As melodias da voz têm eco no sangue. As mãos que se erguem vão à procura de sangue. A vontade dos homens só se cumpre no sangue. A história da terra é um diário de sangue. Sim, mais do que terreno há-de ser o nosso amor. Até que nada reste, até ao fim de nós ou até ao fim do mundo. Até que a noite abrace a terra e se acabe o sonho. Até que tudo arda e tudo seja cinza. Leva-me o sangue, leva-me o sangue, tudo o que em mim morre, canta.
***
Também a dor nos faz a todos mais completos. Nem por amor do seu amor deves tremer. Mas como há-de a morte fazer cessar o amor quando a morte o amor inflama? (...) As palavras não se sujam de lama. Não conhecem o cheiro que só o sangue desprende nem a dança apaixonada que invoca a destruição. Primeiro, os arrepios. Depois, a fome. (...) Não se afasta a morte com a morte. Esta é uma morte sem causa. 
*** 
Acto III
Escurece. Mais um dia há-de morrer e de sangrar a sua luz. Mais um dia há-de nascer para a escuridão e nunca o sangue dos dias saciará este mundo. Cada dia cedemos o nosso corpo a um outro dia, cada noite anuncia sempre em nós uma outra noite. Dormir, esquecer, apagar? Quem habitará a noite funda? A morada das sombras? O rei, o escravo, o súbdito leal? Aquele que comete crimes? Aquele que morre carregado de inocência? O que pratica a justiça cegamente? Ou o que teme a justiça mais violenta? E a que se chama a violência da justiça se a justiça não conhece a medida dos actos nem a medida das cortes? Todos havemos de habitar a mesma sombra. E só a sombra há-de saber qual a sua hora. 
***
Cada inocente tem em si um criminoso. Quem pode jurar nunca violar a lei? E como refrear o nosso instinto senão através dos crimes justos que a justiça assim pratica? (...) Nem só as mãos que se erguem vão à procura de sangue, é o desejo que a besta tem de morrer que a leva ao caçador. Não deve a justiça vingar-se também da vontade que o inocente tem de morrer? Só nesse castigo se cumprem todas as injustiças, entregando justo sofrimento à fome de dor de cada um.
***
Até a morte pode ser um doce castigo.
Castigo maior é sempre a vida. E não há maior vingança do que a dor.
Castigo maior é sempre a vida.
Um corpo é um corpo somente. O que é o sangue senão sonho?
É dos corpos caídos que a história se traça.
Há-de o amor comprar a vida quando quando a morte o amor inflama?
Só pela morte o amor se cria.
E o fogo nasce e morre no fogo.
Onde uma e outra vez o amor se cria.
Todo o sangue quer erguer uma chama imensa.
Nunca o sangue conhece aquilo que ateia.
Nem o fogo sabe quanto aquece e quanto queima.
A cinza deve voltar à cinza.
E o silêncio reina sempre sobre o grito.
Tudo o que em nós canta, morre.
Já a noite abraça a terra.
Tão funda é esta noite a que chamamos vida.
Tão grande é a sombra que nos cerca.
E não há maior obra do que dar ao condenado a luz do dia.
Não há maior obra do que salvar os condenados da ilusão da vida.
O único caminho para a liberdade é o sangue derramado.
E dentro de todos vive o sangue que sempre desejam libertar.
Mas antes de ficarmos livres do sangue temos de ficar livres dos corpos. 
Temos de despir todas as máscaras.
Mesmo quando só queremos descansar?
***
Só nos sonhos poderemos encontrar o tempo mais imenso que esta terra nos negou. Tanto no sonho da terra como na terra do sonho, vivemos sempre pelo fogo. Mas só depois da última canção e do último grito poderemos recuperar o silêncio. E as cinzas que sempre procuramos. Sim, até que findem todas as vozes e gestos que este humano sangue a tanto obriga. Ou até que o fim do mundo chegue e eu sorria. 

Sem comentários:

Enviar um comentário