segunda-feira, janeiro 24, 2011

Luto


Estava de luto, dizia para justificar a apatia daqueles dias. Sentia que tinha ficado viúva de marido vivo. É o pior dos lutos, insistia. Porque cega, trava, mata devagar. Porque se não cumpre nunca. Mas ainda está assim por causa do divórcio, Ana Maria?, perguntavam-lhe as clientes, já passaram tantos anos, o seu filho é quase um homem! Ana Maria engasga-se, comove-se, faltam-lhe as mãos, agarradas ao telemóvel como a um talismã, e as palavras certas. Nem se lembrava que tinha sido casada, quanto mais que o seu BI diz divorciada. Estava de luto, sim, mas pelo marido da outra, pelo homem casado que conhecera numa insuspeita noite de sábado, horas altas, música aos berros. Quem é que conhece um homem daqueles na noite?, perguntava alheada, incrédula, como quem fala sozinha, como quem pensa alto. Um homem daqueles não se conhece num sábado à noite, entre copos e charutos, ripostava, abanava a cabeça como se fosse a primeira vez que dizia alto a frase que seguramente já dissera baixo, para ela, para dentro, infinitas vezes. O homem só era daqueles porque era o homem por quem ela tombara.

Ana Maria chora com os olhos secos. Tudo nela é dor. É mais fácil expiar pecados que o sofrimento, ironiza a mulher de quase 50 anos, o embaraço de quem tem 15. Ana Maria tem quase 50, é verdade, mas não perde oportunidade de mostrar o peito, levantado, hirto, de menina, sem silicone nem marcas do tempo. Um orgulho. Uma mulher invulgar. E muito bonita ainda, se é que há idade para as mulheres bonitas deixarem de o ser. Fazendo das mãos única profissão, também não esconde a cabeça que tem. Gosta de ler, não importa o quê, gostos não se discutem, tem sempre de estar a seguir um livro, diz. E gosta mais ainda de arte e de viajar. Já atravessou os Estados Unidos, a famigerada Route 66, esteve em África vezes várias, a Europa é roteiro de fim-de-semana pelo menos uma vez por mês. Fala inglês, francês, espanhol, italiano, há pessoas assim. Não estudou por aí além, mas aprendeu línguas a viajar. Aprendeu a dispensar os phones de tradução simultânea nos museus, e quando percebeu que era capaz de perceber tudo ficou tão feliz!... Diz isto assim, com a melancolia de uma vida que acabou. Foi por falar bem inglês que num sábado à noite conheceu um daqueles homens que se não conhecem num sábado à noite. Um alemão de 39 anos a chamar por ela de um fato negro e camisa branca, homem requintado, educado, culto. Falaram a noite toda, ela sentia que se conheciam desde sempre. Finalmente alguém que gosta das mesmas coisas que ela, pensou. Cavalheiro, levou-a a casa quando já era dia, despediram-se com dois beijos na face. Ela adormeceu a sorrir, acordou a pensar nele. A pensar que nunca mais o iria ver, apesar de terem trocado contactos. Erro de avaliação. Ele tinha sentido o mesmo, o mesmo receio, não saíra sequer da porta do prédio. Dormiu no carro, ligou-lhe mal acordou.

Ficaram amigos. Ou começaram por disfarçar a paixão na amizade. Ela divorciada, ele em vias de divorciar-se de uma mulher nórdica que não conseguia engravidar. E o que ele queria ter um filho!... Não conseguia viver com a ideia de o não ter. O esforço e as tentativas goradas haviam-lhes desgastado o casamento. Decisão unilateral, ele decidiu. Ela saiu de casa. E Ana Maria passou a viajar todos os fins-de-semana para Berlim. Para o seu amor. À semana, passavam as noites a falar no computador, os dias a trocar mensagens. Meses a fio assim. Necessidade compulsiva, sintonizada. Apaixonada como adolescente, infinitamente compensada por um casamento de duas décadas a que tivera coragem de colocar um fim, tão feliz como sempre acreditara que era possível ser. Um dia, ele apareceu de surpresa no trabalho dela. Não era surpresa de amor. Era despedida de homem sério, honesto. A mulher, a outra, a nórdica, fizera por conta própria a derradeira tentativa na clínica de sempre, a inseminação artificial finalmente resultara. Ela estava grávida agora que estavam divorciados. E ele não podia abandoná-la.

Choraram abraçados, passaram a noite juntos, mas não conseguiram dormir, empanturraram-se com declarações de amor para sempre. E de manhã mudaram de opinião. Não iam, não conseguiam despedir-se. Era mais forte que eles. O amor está repleto de clichés. Mas, apesar de tudo, Ana Maria sentiu-se feliz com a decisão, ignorando, como só as mulheres apaixonadas conseguem ignorar, a certidão de óbito que acabara de ser passada ao seu amor. Acompanhou a gravidez, deixou de viajar para lá, agora era ele quem viajava para cá, amavam-se, e isso era a única coisa que importava. Aceitava que ele já não falasse com ela à noite, aceitava que ele já não viesse todos os fins-de-semana, aceitava a ausência de promessas sobre o futuro. O futuro era agora, era ali, era quando estavam juntos. E foi assim mesmo depois de a criança nascer. Mas no dia do aniversário dela, no dia em que completara 47 anos, ele não veio, não telefonou, não escreveu. Ela não trabalhou, ficou em casa o dia inteiro, no sofá, vestida a rigor, tinha a certeza que ele iria aparecer. Mas ele não apareceu. Nem telefonou. Nem escreveu. Ela achou que ia morrer. De dor, de amor. Tomou medicação para esquecer, para dormir. E quando acordou, no dia seguinte, venceu o orgulho e ligou-lhe. Voltaram a chorar, voltaram a declarar amor, mas ele tinha tomado uma decisão irreversível: não conseguiria salvar o casamento se continuasse a pensar nela. E pela filha, que ele amava mais do que tudo no mundo, tinha obrigação de o tentar salvar. Pediu desculpa a Ana Maria, explicou-lhe que tinham ido demasiado longe, tão longe como o amor que sentiam um pelo outro, mas que não poderia continuar a manter aquela situação. Desejou-lhe felicidades, prometeu que nunca a esqueceria e assegurou-lhe que sim, que era ela o amor da vida dele. Mas que não poderia prendê-la nem pedir-lhe que esperasse por ele. E pouco depois de desligar o telemóvel, escreveu-lhe um mail. A oficializar a despedida.

Ana Maria está de luto. Agarrada ao telemóvel como a um talismã. Não consegue apagar as mensagens, tantas, que trocaram. Não consegue parar de as ler. Diz que precisa de entender o que lhe escapou, em que momento o perdeu e não percebeu. Não consegue acreditar que acabou. Sinto-me uma viúva de marido vivo, diz e repete e volta a repetir. Às vezes, com sarcasmo. Confessa que ainda sonha que um dia ele vai ligar a dizer que não pode viver sem ela. É a mesma coisa que acreditar na ressurreição de um morto?, pergunta, a voz tão longe da mulher forte a que habituou as clientes. O silêncio como resposta desarma-a, ela desfaz-se num pranto, diz: se calhar fui eu que morri e não sei. 

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