sexta-feira, outubro 08, 2010

Sexta-feira


Sexta-feira era dia vermelho no calendário. Não era vermelho de proibido, de obsceno; era vermelho de frágil, de coração nas mãos, de pés sem chão. Não era daqueles dias em que se pergunta: "Hoje é quarta ou é quinta?" Não! Agora, à sexta-feira, sabia sempre que era sexta-feira. E sabia logo quando acordava. Anúncio de silêncio. Sabia que era o último dia antes de ficar dois dias, talvez mais, sem o ver, sem o ouvir, sem saber nada dele. Era o dia em que à noite ficava ali a pasmar, sentada em sentido no sofá para que se não percebesse que estava ali sem estar. Um sofá pode ser uma pátria, mas também pode ser uma prisão. Ficava só ali, surda, só a seguir as palavras da televisão sem lhes ouvir o significado, o timbre das vozes, mais graves, mais lisas, os gestos, as mãos nas mãos de quem se explica, o sorriso de quem o tem, o olhar de quem o baixa ou desvia, os ombros encolhidos ou hirtos, e os braços que volta e meia apareciam no plano errado. E ela ficava ali sempre à espera do plano errado, porque tinha de estar ali a enganar-se com alguma coisa. Mas não era capaz de ouvir o significado de outra voz que não a da voz aflita da sua cabeça. Nem de fazer outra coisa que não ficar só ali a abandonar-se, a esquecer-se. Dela, do mundo, do que mais houvesse. Sexta-feira era dia de rua cortada ao trânsito, de inundação na praça do peito, de convulsão, o dia em que, absorta em absurda penitência, se educava para não ficar triste. Porque talvez não fizesse sentido ficar triste, mesmo se sentia infinitas, urgentes, obsessivas saudades de alguém que nunca sabia se voltaria na semana seguinte. Se ao menos pudesse fugir da sexta-feira como quando fugia de casa a meio da noite aos13 anos...

Lembrava-se da existência dele na vida dela ser apenas coisa ténue. Bela, mas inofensiva. E de ter começado a gostar dele de forma mais ou menos instantânea, amor à primeira vista, mas amor casto. Tratava-o com deferência, e essa deferência queria mesmo significar isso: respeito à prova de bala, ele ali à distância de sete vidas, de mil cidades, ele ali no altar e ela lá em baixo, às vezes em bicos de pés para se fazer notar. Depois,  a distância, não a deferência, encurtou-se, emagreceu. Passou a tratá-lo com um fio de filigrana na mão, como uma criança segura um papagaio no meio da tempestade, sabendo que nunca conseguirá guiá-lo na ventania, mas sempre na esperança de que se fechar bem o punho não o irá perder, e se o puxar, se puxar o fio, talvez consiga mantê-lo mais perto. Talvez do coração, o único lugar onde nunca nada de perde. Lembrava-se de no início gostar dele como gostava talvez daquelas pessoas mais velhas, daquelas com quem se perde na conversa, e com quem a conversa se repete mais duas ou três vezes antes de nunca mais se repetir. Gostava dele como desses, o que significava gostar sem medo de os ganhar ou perder, sem medo de nunca mais voltar a vê-los. Mas dele passou rapidamente a gostar com medo. Com medo de nunca chegar a ganhá-lo para um dia poder perdê-lo. Com medo até de nunca chegar a vê-lo pela primeira vez, quanto mais de um dia deixar de o ver. Gostava dele sem chão, ou pior, com um chão trémulo por baixo, volátil, com uma daquelas pontes dos filmes, cheias de buracos e corrimãos de corda coçada, em que o primeiro passa e o último cai. Mesmo assim, quando não era sexta-feira, sentia-se feliz. Estranhamente, quase pornograficamente feliz. Embriagada. E leve. Tão leve que seria capaz, como Cristo, de caminhar sobre as águas do mar sem se afundar. Estar à beira da possibilidade era sempre estar à beira do precipício.

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