quinta-feira, outubro 28, 2010

Acabou a morfina


Naqueles dias, ele fazia o jantar. E o almoço e o lanche e o resto. Apurava as receitas, introduzia cores, experimentava sabores, arriscava desenhos. Inventava sobremesas, várias para cada refeição. Cozinhava para ela como para uma criança com fastio. Doente. Decorava a mesa, acendia velas, combinava o vinho. Os brinquedos dos adultos. Pacientemente aguardava que ela brincasse com o garfo sem quase nunca o conduzir na direcção da boca para logo depois lhe pedir autorização para voltar ao sofá. Doente. Acedia, fazia-lhe o café, acendia-lhe os cigarros e a lareira. Ela ficava ali, muda, inerte, um corpo morto de olhar vazio. Alheada. Falava-lhe de mansinho, depois a brincar, depois a sério, depois com sussurros meigos, investia tudo na esperança de a roubar àquele torpor, de a ressuscitar. Nada. Embrulhava-a na manta branca que a fazia parecer uma ovelha felpuda e esperava o momento de lhe preparar o copo de leite que a fazia dormir. Levava-a ao colo, metaforicamente muitas vezes, literalmente quase sempre. De joelhos, ao lado da cama, segurava-lhe a mão para a adormecer. Contava-lhe histórias sobre o futuro. Mas ela adormecia logo. Cansada da doença. Antes prometia sempre que amanhã já ia estar boa. Ele dizia: "Eu sei". Mas a meio da noite colava o ouvido ao nariz dela porque ela respirava tão baixinho que parecia não respirar. Ele assustava-se, abraçava-a com força, ela sentia, acordava. Não sabia se estaria a sonhar. Continuava a sentir-se uma placa de esferovite a derreter depois de ter-se aproximado demasiado do calor.

Naqueles dias, ele levava-lhe o pequeno-almoço à cama como a mãe dela fez até ela ser grande. E deixava-a ficar ali preguiçosa pela manhã fora, a janela aberta, o vento a entrar com a melodia das gaivotas e de toda a espécie de pássaro que abunda no jardim. Ele ia ao supermercado, recebia a empregada, dispensava a empregada, fazia a vez da empregada, voltava. Resumia-lhe as notícias dos jornais que el deixou de ler na esperança de que alguma lhe provocasse uma reacção. "Desculpa", era o máximo que conseguia arrancar-lhe. Preparava-lhe o banho, a água a correr, a escaldar, escolhia-lhe a roupa. Enfeitava-a para o frio. E para a esplanada onde depois a depositava com um qualquer livro na mão. Alheada. Doente. A meio da tarde, quando São Martinho recolhe o Verão, ia buscá-la, devolvia-a ao leito, levava-a contrariada à natação, partilhava com ela o Martini como nos dias de calor, assegurava-lhe que ia ficar tudo bem. "Vai ficar tudo bem." Ela acenava, dizia: "Eu sei".

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