quarta-feira, setembro 08, 2010

O fim dos chumbos

[L'ecole de Platon, Jean Delville]

Lá em casa era proibido reprovar. Era igualmente proibido ter negativas. E pouco aconselhável ter notas baixas. Nunca nenhum de nós chegou a conhecer o castigo que valeria um chumbo ou uma nega, porque nunca nenhum de nós arriscou pisar o risco. Ou melhor, arriscámos uma vez, uma vez cada um, algures num período do oitavo ano, mas nunca ninguém soube. Até hoje, pacto tácito. O carimbo com Satisfaz nos testes, equivalente a uma positiva à risca, já era suficientemente embaraçoso para que não tivéssemos muita vontade de o repetir. Não era sujeito a sanção, mas instalava um silêncio que nos fazia sentir, no mínimo, uns mentecaptos. No limite, uns ingratos. Implicitamente, lia-se que não éramos dignos do esforço que faziam para nos proporcionarem o que eles não tiveram.

Passámos doze anos assim, não exactamente aterrorizados pelo medo de chumbar, que era afinal o medo de desiludir quem nos patrocinava, sobretudo os sonhos, mas conscientes da importância de não abrandar. E às vezes não era fácil. Nada fácil. Tínhamos metas para atingir, limites mínimos que não podíamos infringir, mas não tínhamos regras. Lá em casa não havia, nunca houve, horas para estudar nem horas para deitar. Havia centenas de livros à disposição e enciclopédias e atlas e dicionários, mas nenhuma indicação de em quais deveríamos pegar. Foi caminhada que tivemos de trilhar sozinhos. Sozinhos aprendemos a ser disciplinados, a cumprir um horário de estudo e de sono. E foi sozinhos que aprendemos a reconhecer as nossas limitações. Lá em casa, um parecia, ainda hoje, que tinha nascido ensinado de tudo e sem estudar conseguia estar sempre no podium. O outro tinha de se esforçar mais, infinitamente mais, de resto ainda hoje também, para conseguir estar quase lá de vez em quando.

Lá em casa não havia, nunca houve, ajudas para chegar aos lugares. Mas havia mensagens subliminares sobre esses lugares. Mensagens sábias, porque não convidavam a ir, mas despertavam a curiosidade para ir. Por isso, começámos a ler cedo. E cedo aprendemos que os livros da escola não bastavam. Muito menos os professores da escola. A escola, a nossa, era uma escola de interior, pobre como nós, para onde os professores iam provavelmente sem vontade e definitivamente sem empenho. Sabermos ler e escrever sem erros era o suficiente para os impressionar, tão baixas eram as expectativas sobre nós. Saber mais do que o mínimo obrigatório, o que se passava na país e no mundo, garantia nota máxima. Na recta final, entre o 10º e o 12º anos, já sozinhos ali (a outra metade de nós tinha migrado para um colégio), percebemos que os professores nos inflacionavam as notas, que não valíamos as notas que tínhamos. E pior, que talvez aquela matéria não fosse a matéria que deveríamos saber para entrar na faculdade. Era a matéria que por certo consideravam mais do que suficiente para alunos de campo sem futuro. Por isso, no último ano - o último ano em que houve três disciplinas - quase ignorámos o plano curricular. Estudávamos a duas velocidades, uma na escola e outra em casa. Lemos tudo, livros de que nunca ouvimos falar nas aulas e livros que nos ajudavam a entender esses livros. Sem orientação nem apostas sobre o que poderia sair nas provas específicas, não excluímos nada. Saísse o que saísse, estávamos preparados. E estávamos mesmo. Ficámos a quatro pontos dos 100% na prova nacional à qual estava entregue a nossa próxima etapa: entrar no curso de eleição na cidade escolhida.

Correu bem para o objectivo que traçámos; correu mal no resto. Temos, só um de nós, imensas e imperdoáveis lacunas nas disciplinas que não contribuíam para atingir a nossa meta. Por isso temos muita dificuldade, ainda hoje, sobretudo hoje, em estar ao lado dos professores no seu frequente queixume. Olhamos para trás, para a maioria dos que foram nossos, com um espírito crítico que, apesar de tudo, na altura não tínhamos, e quase nos perguntamos como conseguimos chegar até aqui. Chegámos por causa da educação que recebemos, dos pais incríveis que temos, e da sabedoria com que discretamente conseguiram fazer de nós o que queriam. Mas perguntamo-nos também o que teria sido de nós se não houvesse chumbos e se, sem isso, tivessem sido os pais a abrandar na exigência. Nisso, na possibilidade de facilitismo, o governo socialista falha. Porque fornece as ferramentas para emagrecer a distância de contextos e oportunidades, mas não fomenta a importância de as valorizar. Mas não falha, definitivamente não falha, quando exige dos professores aquilo que eles próprios deveriam ser sem lhes ser pedido. É por isso sendo a educação e a formação recebida em casa sempre uma incógnita, porque o desfecho não é infalível, questionamo-nos cada vez mais sobre se valerá realmente a pena estar constantemente a reformar o sistema educativo em vez de se apurar o sistema social. Mas, a cada dia que passa, mais achamos que este governo, em matéria estrita de educação, tem errado pouco. Basta para isso lembrar, mas talvez poucos se lembrem, da triste comédia que protagonizou David Justino...

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