sexta-feira, abril 16, 2010

Ana Teresa Pereira: Se nos encontramos de novo


Mesmo quem nunca teve coragem para ler a Ana Karenine, saberá de cor a primeira frase dessa obra emblemática, dizem, de Tolstoi: "As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são-no cada uma à sua maneira." Eu também ainda não tive coragem para ler o livro e também sei de cor a frase - e também a acho genial. Mas prefiro outros inícios. Prefiro os inícios, alguns, de Ana Teresa Pereira. Prefiro o início de "Se nos encontrarmos de novo": "Talvez seja possível amar uma mulher por causa de um livro, de um poema sublinhado, de um filme a preto e branco, de uma casa, do olhar de um homem quando fala dela, da forma como o seu cão a espera. Da reprodução de um Mondrian na parede da sala."

Mesmo quem nunca leu José Luís Peixoto e só consegue vagamente identificar-lhe a face, achou que podia escandalizar-se quando o primeiro-ministro deste país não reconheceu aquele que é hoje uma das mais cumpridas promessas da literatura portuguesa contemporânea. A pergunta dirigida por José Sócrates ao escritor na celebração dos cem dias deste Governo, em Fevereiro - "Como é que você disse que se chamava? Jorge?" - ficou quase tão célebre como algumas citações dos clássicos. Não reconhecer o rosto de um escritor tem muito que se lhe diga - mas pode dizer mais do escritor do que do leitor. Eu nunca saberia reconhecer Ana Teresa Pereira. Ignoro-lhe por completo a cara. E no entanto é isso, também, que ajuda a que essa mulher madeirense seja o misterioso e terrível fenómeno solar que é. Uma escritora com uma obra superlativamente bela de que só muito de vez em quando se ouve falar.

A sua obra é a história, quem sabe se autobiográfica, da alma. E é uma história de amor pela arte: Mondrian, Rothko, Bonnard, Rembradt, Rublev, Van Gogh, Monet, Degas, Ticiano, Turner, os impressionistas todos da pintura; Iris Murdoch em primeiríssimo lugar, mas também Henry James, Emily Bronte, Ibsen, Rupert Brooke, Rilke, Charles Dickens na literatura. Livros e quadros. Sempre. Bach, Mozart, Haydn, Pizzetti na música; Vincente Minnelli, Tarkovsky, Sokurov, Ingrid Bergman, Katherine Hepburn, Robert Mitchum no cinema. A lista é exaustiva, precisa, sugestiva, minuciosa.

"Se nos encontrarmos de novo" é isto tudo. Mas é mais. É uma história de Amor, claro. E da impossibilidade do amor. Ou do amor que nasce quando o resto morre. É sobre o que fazer com ele, com esse amor, quando tudo renasce. E ressuscita por causa dele. "Um amor que só precisa da presença do outro para existir". É uma história de demónios, de fantasmas, de monstros que amam demasiado para poderem ser santos, de medos expiados a meio da noite, no meio da praia, "com um mapa nos joelhos para não nos perdermos", de setas de papel enviadas para ninguém, "setas atiradas para afastar o medo", de torres, reinos, contos de fadas e castelos de areia. É cheio de contradições. Como a vida.

É sobre os encontros que nos mudam a existência. "Podemos chamar alguém com tanta força, mesmo sem o sabermos, que essa pessoa vem do outro lado do mundo ao nosso encontro. E a nossa vida é feita desses encontros." E de como ficam inacabados, incompletos. E como, se calhar, só podem fazer sentido porque ficam assim, interrompidos. É sobre o que continua depois de desaparecer. É sobre "morrer procurando". É sobre o primeiro amor ser o último. E o último o único. "Vivemos fechados no nosso mundo, e um dia descobrimos que existe mais alguém, é isso apaixonar-se, tomar consciência da realidade de alguém além de nós. Sair da caverna e descobrir o mundo". É sobre ter alguém à nossa espera quando se regressa do inferno. E isso ser um milagre. É sobre ter procurado alguém a vida inteira, amá-lo ainda antes de o ver e depois isso ser mesmo verdade, ele existir mesmo. "É uma coisa terrível cair nas mãos de um deus vivo". É sobre "as lágrimas das coisas", o sofrimento, a vulnerabilidade. O caminho, de que "o amor e a perda fazem parte".

Ashley e Byrne. Ashley e Tom. Ashley e Ed. Ashley e Kevin. Ashley e... É sobre o imenso labirinto até se encontrar a saída, quando há saída. "Todos os caminhos são caminhos solitários, todas as procuras são procuras solitárias. Mas há os encontros que temos ao longo do caminho, e esses encontros são fundamentais, podem fazer-nos ir mais longe. Podem fazer-nos perder o rumo."

"Seria quase um milagre estarem juntos outra vez, encontrarem-se de novo. Se nos encontrarmos de novo, disse Ashley para si mesma, então poderemos sorrir." Era um bilhete de despedida. É sobre ter valido a pena, mesmo quando já nada parecia valer nada. "Eu estou apaixonada, como se fosse o princípio de qualquer coisa. E pratiquei a morte todos os dias da minha vida. E todas as vidas ficam inacabadas."

"If we do meet again, why, we shall smile."
(Júlio César)

1 comentário:

  1. Não sou muito dada à leitura de blogs. Estava à procura de informação sobre uma obra que ainda não li da Ana Teresa Pereira e deparei-me com o seu comentário.Tenho que lhe dar os parabéns. A sua escrita flui naturalmente e ficamos presos à leitura. Não sei quem é, mas tenho a certeza que se todos escrevessem como escreve o interesse pela leitura/literatura dispararia. Obrigada, por aumentar a minha curiosidade pela obra em questão.

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