terça-feira, março 30, 2010

A musa


Amas a musa. Ama-la quase desde sempre e vais amá-la dessa forma perdida, rendida, cega, até ao último dia da tua vida. Ama-la, mesmo temendo amá-la mais do que ela a ti, dúvida que carregas, mas que nem sequer te pesa. Ama-la apesar dos desvios, das arestas, das injustiças, das tempestades. Ama-la com um medo terrível que ela te deixe, que ela te troque. Não irias suportar vê-la com outra pessoa. Por isso, vais aguentando, apagando o que corre mal, reconstruindo o caminho, porque sabes que a vida é assim: se não te deixares engolir pelo pesadelo, se o souberes enfrentar, é porque terás estado à altura do sonho. E a vida, acreditas, vai-te compensando por isso, mantendo-te casado.

Inconscientemente, acreditas que o amor se pode reter, rentendo a pessoa que se ama. Porque não saberias o que fazer contigo, ao amor que sentes, se perdesses o alvo desse amor. Porque se o perdesses, ao olhar para trás, sentirias que a tua vida não fez sentido, porque toda a tua vida foi dedicada a essa mulher que te corta a respiração, a mulher do uniforme curtinho, das pernas morenas, dos pés lindíssimos, dos lábios voluptuosos, vermelhos, molhados. E tu amaste tanto, construíste tanto, partilhaste tanto, aguentaste tanto, superaste-te tanto, perdoaste tanto, fizeste filhos lindos, foste tão feliz, viveste tanto, dedicaste-te tanto, acreditaste tanto, amaste tanto... o que irias fazer a isso tudo, não é?

Tu nunca traíste a musa. Nunca! Nem mesmo quando, nos últimos capítulos, acumulaste namoradas ou amantes ou (a)casos ou o que quer que seja que lhes queiras chamar. O teu coração nunca esteve lá, nas outras camas, nos outros (a)braços, o teu coração nunca vacilou. Nem sequer foi tua a ideia do swing nem das ménages nem do resto. Por ti, experimentarias tudo o que há para experimentar, mas apenas com ela, com a tua musa. Descobriste o amor da tua vida aos 15 anos, já passaram mais de 40!, e tu nunca duvidaste. Tiveste a certeza que era ela ainda antes de saberes sequer o que era o desejo, ganhaste-a aos vinte e tal, mas antes disso já lhe dedicavas poemas, canções, e se a musa nunca vacilasse, tu passarias muito provavelmente a tua vida inteira a viver para ela em exclusividade. Sem nunca olhares para o lado, sem nunca provares outro sabor. E a seres tremendamente feliz com isso.

Tu não sabes, ou não queres saber, mas tu não vives com o amor da tua vida. Já não vives. Vives com o amor que sentes pelo amor da tua vida. Parece a mesma coisa, mas é tão diferente. Porque o amor, tu sabes, para ser da vida, não pode ser como o teu parece ser: intermitente, ausente, apagado, silencioso. Olho para ti e vejo-te a olhar para o tecto em vez de te ver olhar para o céu. Olho para ti e vejo-te com um corpo morto no colo, que te recusas a enterrar. Não consegues ser feliz com ele; menos ainda conseguirás ser feliz sem ele.

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