terça-feira, setembro 15, 2009

Regina



[Foto: Olivia Bee]


Tens nome de chocolate, cara de boneca de porcelana e o sorriso mais desarmante que alguma vez conheci. Justificar completamenteSomos as duas ruivas, tu de um ruivo mais claro, quase louro, e ficamos as duas cravejadas de sardas quando apanhamos sol (tu achas piada; eu nem por isso). E, claro, a nossa pele, branca como o papel, permite-nos apanhar facilmente invejáveis escaldões, mesmo quando só nos bronzeamos à sombra. Tu és linda, inacreditavelmente linda, mas adoras fazer de conta que não. E coleccionas piadas negras sobre isso. E sobre o peso. E sobre a altura. E sobre a vida amorosa. Ally McBeal em versão lisboeta. Quase nunca nos tratámos pelo nome; "lindinha" era apelido que dava para as duas. Eu adorava diminutivos; tu deixaste-te levar.

Descontando as idas a Espanha para comprar caramelos, saí pela primeira vez de Portugal contigo: fomos à Áustria, teríamos 18 anos, e tu pudeste finalmente encenar uma Maria von Trapp da Música no Coração, mas com muito mais pinta. Eu encenei uma sinfonia do Mahler, sentada no piano de viagem dele, lembras-te? Fotografámo-nos como um casal de namorados: nos jardins, nas pontes, nos cafés, nos museus. Trocámos flores. Tu já contavas viagens várias, manejavas mapas com uma destreza que ainda hoje sou incapaz de imitar. Despachadíssima em tudo. Eu limitava-me a seguir a tua sombra, feliz, porque sentia que me levavas pela mão. Sentia que me bastava dizer: "Eu estou com ela". E o que eu gostava de mostrar que estava contigo. Na altura, bem tentei convencer-te de que Paris seria o nosso melhor destino, palco de um qualquer encontro anual da juventude que beneficiaria da presença do Papa, e eu queria muito conhecê-lo antes dele morrer. Mas tu, agnóstica fervilhante, trataste logo de encontrar uma alternativa às férias católicas que eu te propusera. Uma alternativa com brinde, eu sei: Taizé. Inesquecível. A verdade é que poderias ter-me proposto a Lua ou o Pólo Norte. Eu iria contigo até ao fim do mundo. Ou só até ao quarteirão do lado. Eu queria era ir contigo.

Conhecemo-nos no equador do percurso académico, a meio. O mesmo curso, mais ou menos as mesmas pessoas. Pelo menos, muitas das que eram importantes para mim eram igualmente importantes para ti. Tu já lá estavas, na Universidade, quando eu cheguei. Somos as duas da mesma fornada, 77, mas tu entraste um ano mais cedo para a escola ou fizeste dois num, já não me lembro. Seja como for, não é surpreendente em ti. Às vezes, dava comigo a pensar que tu sabias tanto, que estavas tão à nossa frente, que não entendia como podias aceitar fazer parte daquele rame-rame.

No ano em que começámos a falar, eu estava adormecida, quase moribunda, com o interruptor da vida desligado. A vida tinha-me subtraído tanto em tão pouco tempo que não sabia como sair dali. Tinha deixado de falar, de rir, de sair. Definitivamente, tinha deixado de ter paciência para ir às aulas. Já tinha feitos TACs e exames vários, já me tinham sido diagnosticadas todas as espécies possíveis de neuroses, já tinha engolido toda a espécie de comprimidos. E nada. Nada parecia ser suficientemente eficaz para me devolver à terra dos vivos. Até que tu, vá lá saber-se porquê, começaste a procurar-me no único sítio onde poderias encontrar-me: em casa. E aparecias sempre com uma alegria, com uma Primavera tão grande dentro de ti, e eu gostava tanto de te ver, de te ter ali, estava tão encantada contigo, que comecei a sorrir só para tu não ires embora. Para poderes gostar de mim. Para não te fartares daquela minha tristeza. E quando dei conta, tinha reaprendido a rir, a sair. A viver. E não há nada que se possa dizer ou fazer por alguém que seja suficientemente grande para agradecer o ter-nos devolvido a capacidade de rir, de viver. De continuar. A não ser talvez jurar amizade eterna. E eu jurei numa das mil e uma cartas que te escrevi e entreguei à mão e por baixo da porta de tua casa. E, mais tarde, por correio, quando regressaste a casa, a Lisboa, com um sotaque que te queixavas de nem ser de lá nem de cá. Altura em que decidiste colocar no nariz um piercing que nunca cheguei a ver.

Mas vejo a Barbie que me ofereceste quando fiz 20 anos. Estavas farta de ouvir as minhas piadas sobre nunca ter tido uma Barbie quando era pequena e quiseste colmatar a falha num gesto que ainda hoje me leva às lágrimas. Foi a minha primeira e obviamente a minha única Barbie. E é a única boneca que guardo, a única que sobreviveu a um Natal em que decidi dar tudo o que tinha coleccionado até aí. Olho para a Barbie e penso que é como é possível termo-nos perdido. Eu tinha um namorado, quase tão ruivo como nós, ou tão louro como tu, que eu amava e tu amavas, mas de formas diferentes. E o amor da amizade, sabíamos as duas, havia de durar mais que o amor dos namorados. Mas tu ameaçavas-me, dizias que se não houvesse casamento, bem podia esquecer os paninhos de cozinha que prometeste bordar como presente. E de seguida, bem podia esquecer-te a ti. Às vezes penso se era a sério o que dizias a brincar. Mas não, não podia ser.

A verdade é que se há dez anos alguém me dissesse que quando o teu filho nascesse, o teu filho a quem, cumprindo uma das tuas teimosias, deste o nome do rapaz que te escreveu a primeira carta de amor, andavas tu na quarta classe; se me dissessem que eu não não estaria lá, ao teu lado, no dia em que foste mãe, eu não acreditaria. Se há dez anos me dissessem que não estaria contigo no dia em que perdeste a tua mãe, a tua mãe que só conheci por telefone, que só iria saber disso muitos meses depois, eu acharia que o mundo estava todo do avesso. Louco. E, no entanto, não estive lá. Não estive lá, nem em nenhum dos momentos que terão sido seguramente os mais importantes da tua vida. Não te vejo há tanto tempo que já nem sei quanto tempo passou.

Ou talvez te tenha visto no Verão do ano passado, no Alentejo. Não sei. Acordei daquele torpor do calor e quando olhei para o lado, a duas ou três toalhas de distância, vi uma rapariga como tu, com o teu sorriso, com a tua forma de falar, de andar, que é andar aos saltinhos, e ao lado uma criança que deveria ter três ou quatro anos a chamar-te mamã. Os dois em direcção à água com uma prancha de body board. Eras tu? Eras, não eras? Sabes o que fiz? Tentei voltar a adormecer pra me esquecer de ti, daquela improbabilidade que me soube a amarga ironia, mas comecei a chorar antes de conseguir adormecer. A chorar de raiva. Pela falta de coragem de ir ter contigo, falta de coragem para te abraçar, para te dizer que não sei por que raio nos perdemos, mas que eu morro de saudades tuas. Quis sair dali. Depressa. E saí. Para fugir de ti. Porque não queria um encontro de circunstância. Como não o quis quando marcaste, através um mail colectivo, um jantar cá em cima. Queria estar sozinha contigo. Sempre fui muito monopolizadora, eu sei. Sempre quis as pessoas só para mim. Sempre te quis só para mim. Tu queixavas-te disso. "O sol não nasce só para ti, lindinha!"

Não penso em ti todos os dias. Não penso em ti sequer todas as semanas. Mas penso em ti infinitamente mais vezes do que aquelas que estarás se calhar disposta a acreditar. E nunca me esqueço, nunca me esqueci durante este tempo todo, do teu aniversário. Há anos em que penso até que seria um bom pretexto para te escrever, para te telefonar. Mas depois falta-me coragem. A mesma que me faltou quando há dois ou três meses soube da tua mãe. Vou dizer o quê? Que gosto muito de ti? Que gostei sempre? E isso serve-te de quê, não é?

Quando surgiu esta coisa do Facebook, inscrevi-me e cliquei logo o teu nome no motor de busca. Mas tu não estavas lá. Chegaste agora, há duas ou três semanas. Adicionei-te meia a medo, meia em histeria. E aguardei um qualquer sinal teu. Como quando me guiavas pelo Tirol com os teus mapas, dizendo-me quando podia passar. Mas tu não deste sinais. Acordava, ligava o computador e ia sempre ver. Nada. Até que hoje comentaste uma das minhas fotografias. Estivemos as duas em Paris em Novembro de 2007, dizes. Era só disso que eu precisava. Do teu sinal. E se bem te conheço, vais odiar que te escreva publicamente quando poderia tê-lo feito simplesmente para ti. Ou pegado num telefone. Mas eu não consigo fazer isso. Não me perguntes porquê. E depois, apetece-me mesmo fazer-te esta declaração pública. De amor. Ou este público acto de contrição.

Eu costumava dizer que tu eras um dos meus cinco dedos da mão, uma das minhas cinco melhores amigas. Sem ti, durante estes anos todos, perdi o indicador. E não imaginas a falta que ele me fez. A falta que tu me fizeste. E fazes.

Sem comentários:

Enviar um comentário