sexta-feira, dezembro 19, 2008

Beatriz Batarda: hoje e amanhã no TNSJ


Monólogo poético e político, De Homem para Homem (o título original é Jacke wie Hose) inspira-se num episódio da Europa do séc. XX. Relata o autor, Manfred Karge, um dos mais representados dramaturgos alemães da actualidade: “Não sei onde, não sei quem me contou a história de uma jovem mulher que, durante a Grande Depressão, tentou segurar o emprego do falecido marido. Para o conseguir, teve de assumir a identidade do defunto, disfarçando-se e adoptando toda a espécie de artifícios. Evidentemente, o estratagema acabou por se gorar. Um artigo de jornal revelou tudo”.
Escreve Fernando Mora Ramos:
“Récit de vie” chamam os franceses a esta forma teatral. O que a caracteriza? A máxima extensão na mínima forma. A vida, uma vida, toda a sua diversidade, surpresas, altos e baixos, e a evidência demonstrada passo a passo de que há sempre a possibilidade do pior quando se está numa situação já péssima. Claro que falamos, neste caso, não das vidas previsíveis, sem história, do género infância feliz, adolescência brilhante, casamento estrondoso, sucesso profissional, família unida e porventura, até na morte, um êxito inesperado.
Falamos de Ella Gericke, uma mulher que teve de renunciar à sua identidade para sobreviver, e sobrevivendo na pele do seu próprio marido, o Max que tinha ciática que afinal era cancro, passou por um conjunto de experiências de vida inimagináveis e no entanto reais. Trata-se de uma história verídica, já tratada por Brecht na novela O Posto.
Ficcionada por Karge, é estruturada em fragmentos justamente para fazer sobressair apenas o essencial: não se pode ser bom numa sociedade que não o é. Manfred Karge, que trabalhou no Berliner Ensemble, conhece bem a lição brechtiana, a lição contida na famosa A Boa Alma de Setsuan, que demonstra como os bons neste mundo são considerados tolos.
E esta peça é isso, uma manobra global de estranhamento no sentido brechtiano. Não só a articulação dos momentos biográficos, seleccionados como relevantes, com as conjunturas históricas é perfeita (ascensão do nazismo, nazismo, guerra, pós-guerra, Muro de Berlim/Guerra Fria), como o dilema permanente da sua dualidade sexual se revela afinal como a expressão da impossibilidade de se ser, isto é, de se ser alguém, uma identidade.
Ella/Max Gericke é isso: nem uma coisa nem outra. E, no entanto, Ella foi uma criatura que amou, foi desejada, foi solidária, que não optou, mas não quis a guerra, que teve de matar, que foi perseguida, que vendeu o corpo, que se meteu debaixo das mantas com um empresário, que traficou… É a história de uma sobrevivente num mundo que impede a vida, a história de uma vida solitária e clandestina que se multiplicou em identidades forjadas ao sabor dos condicionamentos.

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