sábado, fevereiro 17, 2007

O Douro é um milagre

(Foto: Artur Machado)

Não é um milagre, mas é igualmente esmagador. A viagem pela linha do Douro, do Porto até ao Pocinho, parece uma passagem bíblica com o comboio a circular tranquilamente sobre a água. Mas a visão indescritível de uma paisagem que a mão humana mal tocou, poderá ter os dias contados. A possibilidade de a rede férrea ficar interrompida na Régua está longe de ser só um boato. E, de resto, foi de um boato que nasceu o início do fim da linha que prolongava a experiência até Barca D’Alva. Enquanto existe, a única garantia é a de um passeio inesquecível.

7.26 Campanhã
O dia, como a maioria das pessoas, ainda não acordou totalmente. Emite, a custo, os primeiros raios de luz ainda baça. O comboio com destino ao Pocinho é feito de três carruagens azuis de chapa grafitada. Parece desconfortável, mas não é. Os bancos de madeira há muito que foram substituídos por cadeiras almofadadas. A lotação não está esgotada, mas há muita gente e sacos gordos de viagem. É sexta-feira e o bilhete custa 10.90 euros. Os toques polifónicos a esta hora são ainda mais insuportáveis. As crianças são o único repositório de boa-disposição.

7.34 Ermesinde
O comboio está cheio. Duas mulheres juntas são as únicas adversárias capaz de competir com a euforia infantil. Trocam piadas com o funcionário, contestam as políticas do Governo, recapitulam o resultado do referendo sobre a despenalização voluntária da gravidez e reprovam-no com argumentos que passam pelo sistema nacional de saúde e pela lista de espera a que dizem ser votados os velhos. Lêem o jornal e a notícia do acidente no Tua em voz alta. Lamentam as perdas e que a tragédia possa retirar-lhes o meio de transporte. São professoras do ensino básico. Hão-de sair quatro estações depois de terem entrado, na Livração. Como é que alguém consegue maquilhar-se com o comboio em plena trepidação?

8h Paredes
Metade dos passageiros aproveita a viagem para completar as horas de sono que ainda faltam. A funcionária que vende batatas fritas e Super Bock não tem, por isso, clientes. Fica estacionada ao lado de Catarina, menina de sete anos que não quis ir à festa de Carnaval da escola, mas que se entusiasma a mostrar as máscaras que desenhou. Lanço o primeiro olhar irritado ao vizinho de trás, homem de computador portátil, que não pára de dar joelhadas no banco enquanto tenta descortinar uma posição para dormir. Não a encontra e sai logo a seguir, em Penafiel.

8.33 Marco de Canaveses
A paisagem começa a retirar protagonismo aos passageiros e nunca mais desprenderá da janela o olhar. A viagem parece uma passagem bíblica com o comboio no lugar de Cristo a caminhar sobre as águas. Não é um milagre, mas é igualmente esmagador. Tem de irresistivelmente belo o que contém de perigo. Do lado direito não há chão, não há nada: só o imenso rio Douro, os desfiladeiros, as gargantas. E do lado de lá da margem, as primeiras flores de amendoeira, em rosa-rosa, em rosa-branco, os socalcos desenhados como obras-de-arte e um cenário inteiro que a mão humana, para o bem e para o mal, parece ainda não ter tocado.

8.45 Mosteirô
Sucumbo ao cansaço de uma noite pouco dormida. Acordo como uma ilha, rodeada de água por todos os lados. Não cabe em palavras aquela beleza. Não é um milagre? Só pode ser.
9.01 Ermida
O ruído leve e continuado da viagem, um sol que raramente experimento de manhã e a paisagem como motor de libertação expulsam a cabeça do comboio. Só o corpo está limitado às fronteiras do meio de transporte.

09h15 Régua
“O caminho de ferro foi uma revolução. Se todas fossem assim…” lê-se numa placa da estação. O comboio, que cruza as primeiras quintas e casas senhoriais, começa a perder utentes.

10h06 Tua
Ermelinda Castro é a única resistente. Já todos os passageiros encontraram o seu apeadeiro. Só ela continua ali, a caminho do “convento”. É assim que as amigas do Porto catalogam as suas idas para Alfândega da Fé. Vai para lá desde menina, desde os tempos em que o pai vendia cortiça "aos Amorins" - os tempos em que a viagem era partilhada com as primas e demorava um dia inteiro. Mas o seu olhar, fixo no exterior, denuncia um encanto que nunca se perdeu. “É uma viagem maravilhosa, lindíssima”, repete, com o dedo indicador esticado a acompanhar legendas e memórias. Da infância e de quando ainda não era viúva. O comboio não a leva ao destino. No Pocinho terá que apanhar um autocarro. Depois, já sabe, “são 15 dias em que os únicos passeios são para ir burcar água à fonte e levar o lixo ao depósito”. E o silêncio “essencial para a saúde”.

10h33 Vesúvio
O rio já atravessou a ponte de ferro para o lado esquerdo. É desse lado que agora o olhar se lança sobre os precipícios, os túneis e a Quinta da Ferreirinha, cenário de filme recente.

11h42 Pocinho
A viagem chega ao fim, pontualíssima, numa terra onde o tempo parou. Não há nada além de uma estação renovada. Só dois autocarros e um taxi aguardam quem precise continuar. São mais de quatro horas de percurso para chegar a um sítio que parece sítio nenhum. O senhor Poppe costuma dizer que "a viagem é o viajante" e é verdade.

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