sexta-feira, fevereiro 09, 2007

No Aleixo I

Tem um pé calçado com vários pares de meias, mas sem sapato. O outro pé não existe. Nem a perna. Perdeu-a juntamente com dois amigos num acidente de automóvel. “O carro ia em excesso de velocidade e foi contra uma árvore. O condutor e a rapariga que ia ao lado morreram. Eu fiquei assim". Não diz há quanto tempo foi. Mas foi há tempo suficiente para aprender a manusear a cadeira-de-rodas com perícia. O cabelo-avelã está todo desgrunhado e nem assim perde o brilho. Usa dois totós, apesar de já ter 24 anos. E, no colo, não dispensa uma boneca e um saco de rebuçados.
Sobre a pele morena, os olhos azuis, grandes, luminosos, desviam a atenção dos olhares dos outros da cadeira sem a qual não existe, ali, no meio da estrada, quase sempre em frente ao Hotel Ipanema Park, a caminho da Foz. Os carros passam, desviam-se. Às vezes, param. Ela rodopia, raramente sorri, estende a mão e regressa à linha que divide as duas faixas de rodagem. "Sim, sei que sou bonita. Como posso não saber? Estão sempre a dizer-me isso".
Quando há jogos de futebol e a cidade fica vazia, ela continua lá. Quando chove, como agora, e os trovões caem do céu para se estatelarem no chão como caixas de sapatos com lâmpadas, também. Quando o cansaço a atormenta, desce a rua até ao Aleixo. Não tem casa. Dorme no hall de entrada da segunda torre. E come o que lhe dão. Quando lhe dão.

Bruna tem cara de boneca como a boneca que traz pousada no regaço. “Gosto de bonecas e de ursos de peluche”, conta como se tivesse parado de crescer no momento em que deixou S. Miguel, nos Açores, para ir para o Porto com a mãe e os dois irmãos mais novos. Tinha nove anos. O pai nunca soube muito bem quem era. Estudou num colégio de freiras até ao 7º ano. Depois foi trabalhar para Aveiro. “Era empregada numa loja de roupa”. Nessa altura, conheceu o amor que seria de uma vida inteira se agora não o odiasse. “Vivi com ele sete anos. Ele tinha problemas de droga. Tentei ajudá-lo, mas não consegui. Estragou-me a vida. Tirou-me tudo o que tinha”. E também a filha, Catarina, que agora tem sete anos e vive com os avós paternos. “Eles deixam-me vê-la, mas eu não quero que ela me veja assim. Já é grande, já percebe as coisas. E, um dia, quando isto acabar, não quero que ninguém saiba que passei por isto”.

Não diz o que é isto. Os amigos (?) dizem que isto é a heroína. Dizem que vê cobras quando alucina. Ela diz que tem fobia a cobras. E que não tem amigos.

No dia 1 de Abril faz 25 anos. “Já estamos em Fevereiro?”, pergunta. O presente de aniversário é incontornável: regressar aos Açores. “Não estou farta do Porto; mas estou farta da vida que tenho aqui”. E farta que todos digam que a vão ajudar e que depois nunca façam nada. “Todos dão conselhos, principalmente as mulheres: que eu não precisava de andar assim, que me podiam ajudar… mas eu é que sei. Sei que não me lembro da última vez que fiz fisioterapia, sei nem para uma instituição consigo ir e sei que as pessoas falam sempre demais…”

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