quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Madrid-México

Já adormeci e já acordei aí umas cinco vezes. Tenho o mar da Gronelândia, ou o que suponho ser o mar da Gronelândia por baixo de mim e o corpo amparado por três almofadas, o que quererá dizer que pelo menos duas não são minhas. Não sei como vieram aqui parar - nem quero saber. Tenho os pés insuportavelmente dormentes e uma necessidade aguda de esticar as pernas - mas não posso. Um grupo de passageiros, que parece feito de amigos de infância, está a obstruir a via. E, no entanto, são tudo menos amigos de infância. Aliás, não chegam sequer a ser amigos. Da última vez que adormeci nem sequer se conheciam; agora, estão aqui às gargalhadas, com os braços apoiados no meu banco, como se fossem vizinhos de longa data a contar histórias da vida alheia à janela das respectivas casas. Trocam moradas, números de telefone, tudo o que lhes permita voltar gloriosamente a encontrar-se.

Sempre achei isto muito estranho, as pessoas que fazem amigos em qualquer lado, de qualquer maneira. Não sou assim nem sou melhor; só diferente. É verdade que não sou propriamente uma criatura sociável, e que os meus amigos são os amigos de sempre, salvo raríssimas excepções. Mas o facto de Houllebecq estar a falar-me aos ouvidos da “extinção progressiva das relações humanas” também é capaz de não ajudar lá grande coisa a que seja solidária ou fique sensibilizada com este entusiástico ambiente que me montaram aqui à beira.

A rapariga mais nova tem uma t-shirt preta que faz saber que é recém licenciada em enfermagem. Ela e mais umas cinquenta saídas da fornada 2005/06. Tem o cabelo acobreado e um sorriso espontâneo, bonito, cândido, um daqueles sorrisos que acreditam no futuro e que é possível refazer o mundo, que vivem com esperança e fazem questão de o mostrar. Os dentes pequeninos, geométricos, imaculados. No pulso, um relógio fininho com duas voltas constantemente visitado pelos dedos esguios da outra mão.

O homem mais empolgado com a troca de contactos, topei-o logo ao fim da primeira meia hora – e vou aqui pousada há mais de oito. Abriu com os dentes o plástico de uma caixa Ferrero Rocher e devorou os bom-bons todos, um-a-um, seguidos e sem complacência. Há-de ter quase 40 anos, embora se esforce para parecer mais novo. O cabelo grisalho, aos caracóis e comprido está apanhado atrás com um nó. A camisa riscada, desabotoada, deixa a descoberto os pelos e o peito. E um fio com pedras de marfim igual à colecção de pulseiras que ostenta no braço. É alto e forte. E feio. Mastiga freneticamente uma pastilha só com metade dos dentes, o que faz com que veja aquela bola cinzenta a dançar-lhe na boca. Não é uma visão bonita. Ainda não parou de gargalhar desde que a rapariga lhe deu atenção. Haja paciência!

A rapariga chama-se Esther Lopez. Viveu até aos seis anos em Valência e depois foi estudar para Alicante. Não fala inglês, mas vai para o México durante um ano para, tanto quanto julgo ter percebido, tratar de crianças com problemas. Tem “missionária” escrito na testa. Mesmo. Às tantas, não há quem não queira trocar duas palavras com ela. Até a insuportável mulher, emigrante na Florida há não sei quantos anos, de regresso a casa só para assistir a um casamento, mete conversa com ela. Fica escandalizada por a rapariga espanhola não falar inglês, mas não se escandaliza, pelo contrário, com o facto de ter praticamente desaprendido a sua língua materna. Adiante.

Esther está acompanhada por uma freira, daquelas trajadas à moda antiga, espécie de pinguim, também ela extraordinariamente nova e bonita. E também bastante animada com a tertúlia, toda em espanhol. Estão os três de pé. As costas do banco e a preguiça não me permitem identificar os outros dois membros que completam o quinteto.

Ao lado, um casal masculino parece menos incomodado do que eu com o barulho. Não consigo evitar admirá-los por isso. A paciência dos outros causa-me inveja. Um deles, meio calvo, tem uma t-shirt verde Energie com uma inscrição vermelha e sugestiva: “I fly with you”; o outro, com o cabelo húmido e despenteado, veste uma camisola salmão desmaiado Tommy Hilfiger e usa óculos graduados de armação branca. Nos pés, a sintonia: ambos calçam umas Nike bege iguaizinhas. E ambos têm no colo as mantinhas de combate ao frio, embora não esteja frio. Já os vi concentrados no Bond e na Antonietta; já os vi dormir encostados um no outro; já os vi beber sucessivas garrafas de gin tónico e de vinho tinto. Estão ali os dois animados um com o outro. Sempre e só um com o outro. Gosto disso. A amizade entre dois homens sempre me comoveu mais do que amizade entre duas mulheres, embora a amizade entre duas mulheres seja mais rara. Serão um casal gay?, pergunto, sem a mínima intenção de ofender. “Não, devem ser só amigos. Podiam ser o Ricky e o Jordi”, responde o Miguel. Bem observado. Deixo-os em paz.

Uma voz robótica solicita aos passageiros que regressem aos seus lugares e apertem o cinto. Regressa o silêncio. Finalmente.

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