segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Da amizade. Para sempre.

Ele: So, have we lost the human touch?
Ela: Diz-me tu.
Ele: Hmmm...
Ela: Já não posso entrar?
Ele: Pergunta malvada essa, que me coloca na posição de carrasco...
Ela: Não é malvada.
Ele: Da última vez que falámos disseste que fui agressivo contigo. Percebi porquê. Mas não sei se ainda podes entrar. Tem acontecido tanta coisa...
Ela:Coisas boas, espero.
Ele: Não, não foram nada boas. Foi uma época muito complicada, mas acho que até a Lei de Murphy tem um fim de jurisdição. Agora quero valorizar e discriminar os amigos. Os amigos daquela verdade sempre presente e que preenchem tudo.
Ela: Aceito isso (bem... mais ou menos...), ser penalizada pela ausência...
Ele: Espero que não aceites. Porque não tem nada a ver contigo; talvez só comigo. Daí que, provavelmente, tenha sido agressivo e injusto contigo...
Ela: Consegues distinguir a ausência física da ausência de gostar? E perdoar a diferença entre uma coisa e a outra?
Ele: Não há nada para perdoar. Queria que percebesses que não fui precipitado em tudo o que te disse. Pensei muito na nossa relação, fui até ao passado para ver de onde vinha. A verdade é que a nossa relação é muito diferente da relação que tens com a minha namorada.
Ela: Claro, eu sei.
Ele: Ela ensinou-me que tu eras uma fada, um elemento mágico...
Ela: E tu percebeste que não sou...
Ele: Não, não é isso. Acho que o desagravo começou pelo lado dela, por todas as expectativas que ela sempre criou contigo. És como um pai natal, de quem sempre se fala, e por quem eternamente se espera...
Ela: Uma fada que não faz magia... um pai natal que nunca chega...
Ele: Se às vezes nos chateaste ou nos sentimos tristes foi por, inevitavelmente, estarmos apaixonados por ti. E sim, por seres um elemento mágico, uma fada. Encantadora e sedutora.
Ela: E em que momento descobriram que não eram correspondidos? Que eu sentia coisas diferentes daquelas que vocês sentem?
Ele: Não se trata disso. Trata-se de jardinagem. Toda a gente gosta de flores, mas poucos cuidam efectivamente delas.
Ela: Sim, eu sei...
Ele: Depois, não pode haver surpresas por murcharem.
Ela: Gostava que me deixasses contar a minha versão...
Ele: Mas é óbvio que quero ouvir a tua versão. Ouvir-te só. Isso significa estares presente.
Ela: Acreditas que é possível deixar murchar uma flor que se ama? Só porque, às vezes, a vida atropela-nos e deixa-nos sem saber muito bem como cuidar dela? Deixá-la murchar só por absoluta incompetência?
Ele: Sei, mas nada pode ser mais paradoxalmente absurdo, não achas? Porque se não nutrirmos o amor vamos cultivar o quê? O mundo não está a ficar um sítio mais agradável. Só as pessoas podem fazer e criar uma realidade mais suportável. Porquê abdicar?
Ela: Mas achas que deves matar o jardineiro só porque ele falhou? Não é humano falhar?
Ele: Não sou radical. Nunca mataria. É humano falhar, mas mais humano é recuperar das falhas. E concretizando, deixa-te de merdas, não falhaste. A única coisa que magoou e confundiu foi a dissonância entre esse sentimento que trazes em ti e a realidade. Moramos num sítio tão pequeno e já mudámos tantas vezes! Tanta coisa acontece numa distância tão curta...
Ela: Porra, deixa-me entrar! Mas não estejas à porta com uma espada! Dessa forma, não vou conseguir entrar... e acredita, ficarei infinitamente mais infeliz com a perda do que tu...
Ele: Pois, mas ainda não percebeste que ninguém está à porta? Que nada está armadilhado? Que não sou capaz de te convidar para entrar e depois pregar-te uma rasteira? E que sou tão sincero hoje como quando te convidava para fazermos um intervalo e irmos descansar num prado? Neste momento, não sei se estamos a entender-nos...
Ela: Acho que sim, que estamos... A única diferença é que ainda não contei a minha versão. E sinto que, diga o que disser, tu vais sempre achar absurdo, contraditório, inaceitável... talvez seja, não sei. Eu sei que os amigos não se deixam propriamente numa lista de espera...
Ele: Mostra-me o teu lado...

[Ela mostra-lhe o lado dela]

Ele: Pois, mas quase sempre me dá a sensação que tu não percebes bem a nossa posição, a nossa expectativa e postura. Fiquei sempre, aliás, surpreendido e quase ofendido com algumas coisas que dizias...
Ela: Por exemplo?
Ele: Percebo que as digas mas, na nossa realidade, não fazem sentido nenhum. Uma das coisas que mais nos deixava tristes e saudosos era suspeitar que, de facto, podias não estar bem. Não sei qual é a tua perspectiva sobre o que deve um amigo fazer quando vê o outro mal, mas sempre me deu a sensação de que nos entendias mal, como se fossemos um elemento de pressão sobre ti...
Ela: É verdade. Às vezes senti isso, essa pressão...
Ele: Sempre quisemos estar perto para te apoiar incondicionalmente. É quase ofensivo quando dizes que posso estar à porta com uma espada.
Ela: Sei, de coração, que vocês quiseram sempre só que eu ficasse bem. Mas sou assim, desapareço quando estou mal. Não sei fazer da fragilidade um palco.
Ele: Às vezes, penso que a distância já é muita, e que todos confabulámos personagens que foram aos poucos, e conforme as circunstâncias da vida, e os imprevistos da interpretação, dando origem a caricaturas das pessoas reais.
Ela: Achas que nos transformámos em caricaturas? Que temos imagens uns dos outros que não correspondem àquilo que realmente somos?
Ele: Talvez. Por isso sempre rejeitei que te considerasses culpada, quase como se nós te estivéssemos a considerar culpada...
Ela: Mas é isso que parece. E isso também que me trava.
Ele: Não sei. Acho que não sou quem tu me transmites que pensas que sou. Porque jamais fiz alguém sentir o que tu me dizes que eu te faço sentir, o que nao invalida! E, vasculhando a minha memória, tenho dificuldade em saber o que possa ter feito ou dito para que pensasses dessa forma. E isso incomoda-me, como sei que te incomodam algumas coisas que te disse. Daí achar estas percepções tão distintas, intrigantes...
Ela: Mas não há nada de intrigante. O que me fazes sentir existe. A maneira como te via é a maneira como te vejo.
Ele: Continua a ser intrigante.
Ela: Mas o que há de intrigante?
Ele: Não sei.
Ela: Deixaste de acreditar em mim? No que digo? No que sinto?
Ele: Não é isso, e não te sei dizer o que é. Quase me apetece voltar ao início e perguntar-te novamente: have we lost the human touch?
Ela: Continuo a devolver a pergunta.
Ele: Sintetizando, acho que te percebo bem.
Ela:Finalmente, fazes-me sorrir.
Ele: Dou-me melhor com sorrisos.
Ela: Gosto muito de ti. Não será isto o mais importante?
Ele: É importante, sim. E quero que decores, que tatues ou coloques num post-it que não sou um monstrinho a reclamar a tua atenção, o teu carinho. Vivo a amizade de outra forma: quando tenho uma amiga quero dar-lhe tudo o que sou. Estou lá. Nunca me tinha acontecido ouvir de uma amiga o que ouvi de ti. Houve vezes em que achei que eras uma exagerada, que não podias gostar tanto assim de mim...
Ela: Mas gosto. E gosto de forma exagerada - é a única forma que existe para gostar dos amigos.
Ele: É obvio que é importante o amor, o carinho, o gostarmos uns dos outros. Mas também não será igualmente importante que as relações existam? Que funcionem?
Ela: Claro. E quero que a nossa relação volte a existir fora do coração. Estou só a dizer-te que a distância não mudou nada do que sinto. E mais: não há nada mais bonito do que alguém a reclamar a nossa presença. O teu protesto comove-me até às lágrimas.
Ele: Era bom que agora estivessemos a ouvir a mesma música. Conheces bem: "Fistfull of love", do Antony.
Ela: "We live together in a photograph of time/I look into your eyes/And the seas open up to me/I tell you I love you/And I always will." Estou sempre a ouvir o Antony.
Ele: É inevitável continuar a gostar de ti. Apaixonado e irritado por todo o tempo que não estamos juntos.
Ela: Tens noção de há quanto tempo espero ouvir isso de ti?
Ele: Repara que nenhum idoso gosta de recordar os tempos em que namorar era apenas uma longa conversa, uma cantiga do bandido, à janela. Só quero um abraço, um beijo, um roçar de olhares e um sorriso teu.
Ela: Tens isso tudo de mim. E tens mais.
Ele: Não quero pressionar-te.
Ela: Não estás a pressionar-me.
Ele: A única pressão que faria era no teu peito durante um abraço. E assusta-me que tenhas percebido como forma de pressão a minha postura...
Ela: Vou provar-te que tudo faz ainda sentido.
Ele: Mas não tens nada para provar. Nada. Nada. Nada se prova. Eu também não tenho como te provar que não sou quem tu pensas que sou.
Ela: Mas tu és. Eu sei.
Ele: Só quero estar contigo. É só isso. Senão tudo isto será uma história de amor separada, distante, cartas de namorados que se enviam e que, algures no mundo, sabemos que é correspondida. Mas também o Jude Law fartou-se de andar no Cold Mountain só para mostrar que vale a pena estar próximo.
Ela: Obrigada. Pela espera e por tudo.
Ele: Não quero que venhas agora a correr para cá. E não penses que vou agora a correr para aí. Mas gostava que nos encontrassemos com suavidade para disfrutarmos disto. Gosto de ti, porra!
Ela: "Gosto de ti, porra!" sabe melhor do que um gelado de chocolate!
Ele: Eu já podia ter morrido e tu podias não me ter visto a ficar careca...
Ela: Não estás a ficar careca e não havemos de morrer tão cedo.
Ele: Gostar é a melhor coisa que conheço, que alguma vez vou conhecer. Gosto de gostar. Gosto muito de gostar de ti. E isso já me irritou no passado, mas conformo-me no teu charme.
Ela: Também eu. Também eu. Também eu. Não somos assim tão diferentes. Eu só um bocadinho mais atada.
Ele: Caramba, queria tanto poder fazer contigo coisas como as que fiz esta noite. Espero que uma conjugação cósmica proporcione um encontro.
Ela: Se pudesses ver como estou a rir...
Ele: Ficas muito mais bonita assim, lembro-me disso...
Ela: Estás no meu coração. Vais estar sempre. E o coração, quando está cheio, faz-nos rir.
Ele: E tu vens comigo agora. A porta está aberta para entrares.
Ela: Já entrei.
Ele: É óptimo ter-te ressintonizada.

1 comentário:

  1. livre fluxo do que
    acontece
    dentro.

    gosto do que leio
    quando abro esta porta.

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