quarta-feira, outubro 11, 2006

The Pillowman


(Fotografia tirada no atelier de Paula Rego, em Londres, em Novembro de 2004. A pintora construiu o "Homem almofada" depois de ter assistido à peça de Martin McDonagh's. E pintou-o posteriormente num tríptico que esteve em exposição no Museu de Serralves, no Porto, há dois anos.)
Quem teve o incomensurável privilégio de assistir à peça "The Pillowman", em cena no Teatro Maria Matos, em Lisboa, até ao próximo domingo, já conhece o texto que se segue. Quem não assistiu à brilhante estreia de Tiago Guedes na encenação, mas ainda espera assistir, não deve, ainda, ler o texto. Quem não assistiu nem tenciona fazê-lo pode ler. Deve ler. É uma história assinada pelo irlandês Martin McDonagh's - um dos dramaturgos mais polémicos, negros e absolutamente geniais da actualidade.
Se há teatro que não nos deixa nunca mais iguais, esta peça será disso o exemplo maior. Com um elenco inatacável - Albano Jerónimo (agente Ariel), Gonçalo Waddington (Katurian, o escritor), Marco D'Almeida (Michael, o irmão do escritor), João Pedro Vaz (agente Tupolsky) -, Pillowman é a peça que há-de ficar a ressoar durante vários dias (meses?) no que existe de mais fundo em nós. A arte justifica tudo?

"O escritor e o irmão do escritor"

"Era uma vez um rapazinho cujos pais, desde o dia em que nasceu, inundaram de amor, gentileza, carinho e essas coisas todas. Vivia numa grande casa no meio de uma linda floresta e o seu quarto era perfeito em todos os sentidos. Ele não precisava de nada: todos os brinquedos do mundo eram seus, todas as tintas, todos os livros, papéis e canetas. Todas as sementes da criatividade foram implantadas nele desde muito cedo e foi a escrita que se transformou no seu grande amor: historinhas, contos de fadas, pequenos romances, todos positivos, muito felizes, sobre ursinhos, porquinhos e anjinhos. Algumas das coisas que ele escrevia eram boas e outras eram muito boas. A experiência dos seus pais tinha funcionado. A primeira parte da experiência dos seus pais tinha funcionado.
Foi na noite do seu sétimo aniversário que tudo mudou e os pesadelos começaram. O quarto do lado do seu tinha estado sempre fechado a sete chaves com alguns cadeados e vários trincos, por razões que o rapaz nunca percebera mas que também nunca questionara. Nessa noite começou a ouvir baixinho, vindos desse quarto, através da parede grossa de tijolos, sons de berbequim, sons de correntes a arrastarem, sons de pequenas descargas eléctricas e o som de gritos abafados de uma criança. Foi assim nessa noite e em todas as noites que se seguiram a essa.
- O que eram aqueles barulhos todos a noite passada, mãezinha? - perguntava ele depois de cada interminável noite que passava em claro.
Ao que a mãe respondia sempre:
- Oh meu querido, é apenas a tua maravilhosa e exagerada imaginação a pregar-te partidas.
- Então todos os meninos da minha idade ouvem sons horríveis durante a noite?
- Não, meu querido. Apenas os extraordinariamente talentosos.
- Ah, boa!
E foi assim. O rapaz continuou a escrever e os pais continuaram a encorajá-lo com amor profundo. E todas as noites, o som dos gritos e do berbequim continuaram a ouvir-se e as histórias do rapazinho foram ficando mais negras e mais negras e mais negras. Foram ficando cada vez melhores, o que é normal, por causa de todo o amor e encorajamento dos pais, mas foram cada vez mais negras, o que também é natural por causa do constante som de crianças a serem torturadas.
Foi no dia em que fez 14 anos, num dia em que estava à espera de saber o resultado de um concurso literário, do qual era finalista, que um papel deslizou por baixo da porta do quarto que estava trancado. Um papel que dizia: "Eles amaram-te enquanto me torturaram durante sete anos seguidos com o único objectivo de realizarem uma experiência artística, uma experiência artística que funcionou. Tu já não escreves sobre porquinhos verdes, pois não?" O papel estava assinado "Teu irmão", e estava escrito a sangue.
Depois de ler o papel, o rapaz pegou num machado, rebentou a porta e entrou no quarto para encontrar os seus pais a sorrir para ele, sem mais ninguém. O pai dele tinha um berbequim na mão e carregava um gatilho para fazer sons; a mãe estava a fazer uns gritos abafados como se fosse uma criança em apuros; no meio deles estava um pequeno balde com sangue de porco. O pai sorriu e disse ao rapaz para espreitar para o verso do papel escrito em sangue. O rapaz obedeceu e leu no verso do papel que tinha vencido o grande prémio do concurso literário. Todos se riram muito. A segunda parte da experiência dos seus pais tinha funcionado.
Mudaram de casa logo a seguir e apesar dos sons e dos pesadelos terem terminado, os seus contos permaneceram estranhos e retorcidos, mas bons. E ele até chegou a agradecer aos pais por tudo o que lhe tinham feito. Anos mais tarde, no dia em que o seu primeiro livro foi publicado, decidiu voltar à cas da sua infância pela primeira vez desde que de lá se tinham mudado. Ele pendurou-se em pensamentos e recordações do seu quarto, a olhar para todos os desenhos e para todos os brinquedos que lá tinham ficado e depois entrou no quarto do lado do seu e também esse permanecia intacto, com os velhos e ferrugentos berbequins, correias e fios eléctricos por todo o lado e sorriu perante a insanidade de tudo aquilo.
Mas o sorriso acabou por desaparecer rapidamente quando o rapaz descobriu o cadáver de uma criança de catorze anos que tinha sido ali deixada a apodrecer, com praticamente todos os ossos partidos ou queimados, e que segurava na mão, uma história completamente coberta de sangue. E, horrorizado, o rapaz leu aquela história, uma história que só poderia ter sido escrita nas mais horríveis circunstâncias e que era a coisa mais bonita e gentil que alguma vez tinha lido, mas ainda mais grave, melhor do que qualquer coisa que ele próprio alguma vez escrevera. Ou que pudesse alguma vez vir a escrever.
Então, o rapaz queimou a história e cobriu o seu irmão outra vez, e nunca mencionou uma palavra do que tinha visto a ninguém. Nem aos seus pais, nem aosseus editores, a ninguém. A última parte da experiência dos seus pais tinha terminado".
Katurian K. Katurian

1 comentário:

  1. Foi de facto um prazer ter assistado a The Pillow Man.
    Grande espectáculo de teatro em todos os sentidos:interpretação, texto, encenação, cenário...

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