sábado, março 11, 2006

País esquizofrénico

Miguel Sousa Tavares escreveu no Expresso que nunca votou em Cavaco Silva. Copio-lhe a confissão: eu também não. E mais: votei em Mário Soares para as eleições presidenciais. Votei com aquele sentimento de privilégio que sentem as pessoas que em 1986 não puderam contribuir para esse momento histórico, por serem ainda menores de idade. Votei com a intenção de ver repetidas as proezas. Votei como quem lhe agradece.
Na tomada de posse de Cavaco Silva voltei a sentir orgulho no candidato preterido pelos portugueses. Num país que acusa os políticos de se digladiarem em público para se entreterem amigavelmente em privado, a atitude do ex-presidente da República foi, no entanto, por pura ironia (só pode), ferozmente reprovada. O homem candidatou-se com mais de 80 anos, candidatou-se convencido de que venceria aquela que seria (foi) a sua última batalha. Perdeu. Não tem o direito de ficar zangado? Não tem o direito de manifestar publicamente a sua tristeza ou raiva ou descontentamento ou seja o que for? Ligou a Cavaco no dia das eleições a felicitá-lo, não chega? Podia tê-lo cumprimentado no dia da sua tomada de posse. Não o fez. E depois? Por que raio de razão as pessoas sentem tanta necessidade de alimentar a máquina da hipocrisia?
Pessoalmente, fiquei a admirá-lo ainda mais. Mas a imprensa que já havia levado Cavaco Silva ao colo durante a campanha, a mesma que tratou Mário Soares como um velho decrépito e caquético, saiu logo em defesa de sua excelência de Boliqueime.
Para o Jornal de Notícias, Mário Soares foi deselegante. "Um ex-presidente e ex-candidato não cumprimentar o PS é, no mínino, deselegante. Muito deselegante."

Para o Expresso, Mário Soares foi sobranceiro: "O semblante que exibia e a recusa em falar aos jornalistas eram provas concludentes de que ainda não digeriu os resultados de 22 de Janeiro nem percebeu que a sobranceria (tão evidente na campanha como esta semana) não o levará a reconquistar o coração dos portugueses."
Resta o Público para salvar a honra. O único jornal com coragem de colocar Mário Soares a subir no termómetro. E, já agora, o único com memória e conhecimento. "Pode não ter ido ao beija-mão ao novo Presidente, está no seu direito, até porque tem a desculpa das regras do protocolo relegarem para segundo plano os ex-Chefes de Estado na apresentação de cumprimentos. Pode não ter estado sorridente. Pode até ter estado em “meditação profunda” durante o discurso de tomada de posse de Cavaco. Em tudo esteve igual a si próprio, agiu de acordo com a sua consciência, sem hipocrisia. Mas esteve lá! Algo que o recém-empossado Presidente não fez, quando, há dez anos, foi derrotado por Sampaio."

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